quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Dos amigos e inimigos dos EUA


No mundo do capital, dominado pelo império estadunidense, as noticias que passam nos jornais de TV ou que saem nos impressos são apenas aquelas que interessam ao poder. Vejam o caso do policial Óscar Pérez, abatido em combate com as forças venezuelanas. Durante as guarimbas (protestos violentos promovidos pela oposição venezuelana, que deixaram mais de 100 mortos), ele se amotinou e roubou um helicóptero da força policial onde atuava, jogando granadas no prédio do Tribunal Superior de Justiça. Por pura sorte não causou vítimas fatais.  Gravou vídeos contra o governo e atuava como uma espécie de “rambo”, realizando ações ousadas e chamando o povo para se rebelar. Não conseguiu mais do que um pequeno grupo que o acompanhava. Por sua ação criminosa de bombardeio do TSJ foi dado como foragido e estava sendo procurado pela polícia. Ele seguia ameaçando o governo, prometendo novas ações violentas. Morreu num enfrentamento com a polícia, a qual foi recebida à bala. Dois outros policiais morreram também no mesmo episódio que culminou com a morte de Pérez. 

Na mídia mundial a informação que circula é de que Pérez foi assassinado friamente. Há até quem fale em um massacre, de mulheres e crianças. As mentiras se avolumam e se propagam sem parar. Cada um aumenta um ponto. Poucos falam da ação criminosa de Pérez ou de suas constantes ameaças, inclusive de matar o presidente. A Venezuela é um país que vive uma dura luta de classes desde que Hugo Chávez se elegeu em 1998, com um grupo opositor – a velha elite – violento e capaz de tudo para retomar o controle do país. Justamente com esse objetivo, esse pequeno, mas poderoso grupo, tem aplicado um guerra econômica, escondendo produtos, levando a fome para o povo venezuelano, tentando desestabilizar o governo atacando a população. Foi assim com as guarimbas, que levaram a morte a mais de 100 famílias. Ainda assim, a mídia considera que a culpa de tudo o que acontece é do governo. Claro, o governo de Maduro é inimigo dos Estados Unidos. Então, contra ele, tudo. 

Já os amigos dos Estados Unidos podem cometer todas as atrocidades que isso não aparece em destaque em nenhum jornal. Israel contra a Palestina é um exemplo bem antigo. O estado sionista, que é amigo dos EUA, invade territórios, expulsa famílias, prende crianças, mata gente a granel e ainda aparece como vítima nas páginas dos jornais e nas telas da TV. 

E agora, vejam o caso do Iêmen, um pequeno e empobrecido país do Oriente Médio, onde um grupo rebelde luta para garantir a liberdade do país que é dominando por grupos aliados da Arábia Saudita, amiga dos Estados Unidos. Lá, também há um bloqueio de produtos contra a população, que tem levado fome a milhares de pessoas.  Quem fala disso? Segundo informações divulgadas timidamente pela BBC de Londres, estima-se que mais de 20 milhões de pessoas estejam impedidas pelas forças governamentais de receber ajuda que chega de outras partes do mundo. 

O conflito no Iêmen é tratado pela mídia como um caso de guerra civil, interna, que teve seu início na chamada Primavera Árabe, quando o presidente que governava havia 33 anos foi deposto. Depois, o seu substituto foi se aliando aos interesses da Arábia Saudita e foi considerado traidor. Isso motivou o seguimento da rebelião. Mas, em um determinado ponto do conflito começaram a surgir informações de que os rebeldes estavam sendo financiados pelo Irã, que é inimigo dos EUA. Então, para combater o “eixo do mal”, a Arábia Saudita, que é amiga dos EUA, providenciou “ajuda” ao governo. Assim, os rebeldes que lutam pela formação da república Popular do Iêmen, são demonizados, enquanto as forças governamentais, aliadas dos sauditas, amigos dos EUA, são mostradas como as forças do “bem”. A região tem suas complexidades, e nada é assim tão simples. Mas é assim que a coisa é tratada. Na verdade, a destruição causada pela guerra e a interferência externa nos conflitos internos entre grupos, além de trazer profundo sofrimento ao povo, ajuda a criar um novo caldo de fundamentalismo, com a ação de grupos extremistas diversos, alguns, criminosos, que crescem em meio ao caos, provocando mais destruição e morte. 

Por conta dessa guerra, em dois anos já morreram mais de 10 mil pessoas, sendo que cinco mil eram crianças, conforme dados da Organização das Nações Unidas. Ou seja, metade das vítimas são crianças. E onde está essa informação? Porque ninguém se importa com essas crianças? A resposta é simples. Elas fazem parte de um povo que é inimigo dos EUA. 

Da mesma forma que a Venezuela sofre com a falta de comida por conta de um bloqueio imposto pelos EUA, o Iêmen também sofre. Mas, não importa. Para a mídia, se são inimigos dos EUA, são todos bandidos e devem morrer. A Unicef divulgou na última semana que mais de 400 mil crianças estão em processo grave de desnutrição no Iêmen, por conta do bloqueio. Mas, para a mídia comercial, não importa. São árabes “do mal”, então, se morrerem, melhor. 

Cuba já viveu todo esse terror e sabe muito bem o que significa viver em permanente bloqueio comercial. Durante o chamado “período especial”, quando a União Soviética acabou, e era o único bloco que vendia produtos a Cuba, a pequena ilha viveu duros tempos, de muita fome e sofrimentos indizíveis. Mas, as gentes sobreviveram, sabe-se lá como. E seguem enfrentando um bloqueio criminoso. E a cada baque que sofre o povo, regozija-se a mídia comercial internacional, saudando o fim do regime socialista. Não importa se morrem as gentes, se há fome, se há dor.  

Da mesma forma a Venezuela, que hoje está enfrentando essa terrível tortura imposta pelos EUA que é a de matar pela fome. E quando se defende, vê-se retratada como uma ditadura.  

O Iêmen, lá longe, perdido entre os milionários do petróleo que querem seu território para garantir a passagem dos navios petroleiros pelo estreito de Bab-el-Mandeb, ligando o oriente com a África, está sendo atacado por uma ditadura, a da Arábia Saudita. Mas, essa não é chamada de ditadura. Porque é apoiada pelos EUA. E aqueles homens, mulheres e crianças que se rebelam, são considerados inimigos do capital, inimigo dos EUA. Então, nada se noticia sobre eles. Nada se diz de sua complexa e dura realidade. E enquanto se formam correntes de dor e pesar pela morte do soldado venezuelano que caiu em combate, lutando para derrubar um governo eleito democraticamente pela maioria da população, nenhuma lágrima cai pelas 400 mil crianças que morrem lentamente, de fome, no Iêmen.

São os dois pesos, duas medidas de um mundo violento, no qual os interesses financeiros de um pequeno grupo se sobrepõem aos desejos de liberdade e de vida bonita de uma maioria que é avassaladora, mas ainda sem poder. É a expressão concreta da luta de classes. Conhecer a realidade, então, é fundamental, para que cada um possa saber onde se posicionar.


segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

O marrentinho



Cuidar de uma pessoa velha requer um longo aprendizado, feito de tentativa e erro. Quando trouxe o pai para viver comigo, sabia que seria um caminho desconhecido, mas não hesitei. Haveria de dar a ele um tempo bom, nessa hora em que a pessoa deixa de ser útil. Sim, porque o velho é um inútil do ponto de vista do sistema. Ele não produz mais valor. Não trabalha. Só vive. Vive e frui. O tempo lhe pertence, não há compromissos nem ansiedades com o cotidiano. Muito da memória vai embora, e me parece até bom. Porque a pessoa pode sofrer um bocado com as lembranças.

Nesse emaranhado de coisas, o cotidiano do cuidado não é coisa fácil. Mas, a gente vai aprendendo.

Acostumado a um regime alimentar bem simples, foi dureza fazer o pai comer coisas como frutas, legumes ou peixe. Tudo que oferecia ele recusava.

- Quer um pedaço de mamão, pai? Tá muito bom.
- Eu detesto mamão. Não quero.
- Vamos comer um peixe hoje no almoço, que tal?
- Detesto peixe.  Não vou comer.

E eu me descabelando, sem saber o que fazer para ele comer coisas como brócolis, couve,  manga e outros quetais. A ordem médica era comer bem, tentar ingerir as vitaminas necessárias com a comida, para evitar as bagas.

Foi aí que me deu o estalo. Lembrei das historinhas do Rubem Alves. O negócio é não dizer o que é.

Desde então, preparo uma tigela com mamão cortadinho, ou melão, ou manga, cubro com melado, e boto na sua mão.

- Ó, come aí que tem vitamina.

Ele me olha, sereno, pega a tigela e vai comendo. E se o o cardápio do dia for peixe, eu simplesmente ponho no prato, como quem não quer nada e ele vai comendo, bem campante. Já as folhas verdes, não tem jeito. Se colocar no feijão, ele vai caçando as bichinhas, uma a uma, acumulando no lado do prato.

- Isso é ruim.

O jeito então é fazer “tortillas”, misturado as folhas com batata e ovo. Aí dá certo. Ou então, bater no liquidificador e misturar no feijão, invisíveis.

- Quer café, pai?
- Deus me livre.

Espero um pouquinho, faço o café e levo pra ele, postado em frente à TV, vendo novela mexicana. Ele pega a xícara e vai tomando, comendo um bolinho de cenoura, sem chiar.

A parada é dura, mas é também engraçada. O marrentinho é figura!


Das perdas



Foi lá pelo final dos anos 90, eu fazia mestrado em Porto Alegre. Aluguei um pequeno apartamento no Bomfim, bairro dos meus encantos, e por ali saracoteava entre a PUC, Lancheria do Parque, o bar João e o Parcão. Pura alegria. Nos primeiros meses o dividi com outra companheira de Florianópolis, mas ela terminou seu curso e eu fiquei sozinha. Então, conheci uma garota no mestrado. Era de outro país e havia perdido a bolsa. Ainda lhe faltava um ano para terminar a dissertação. Estava desesperada, sem saber como iria continuar em Porto Alegre.

Então, ofereci a ela ficar comigo no apartamento. Era pequeno, mas não havia problema em receber mais uma pessoa. Ela veio e passou a compartilhar a vida comigo. Não cobrava aluguel dela, óbvio, e tampouco a comida que repartíamos. Sem bolsa, ela ganhava alguns trocados, fazendo um que outro bico.

Eu havia arrumado bem bonitinho o cafofo, pois sempre gostei das coisas assim. Tinha um sofazinho, uma escrivaninha, computador. Tinha meus badulaques latino-americanos pendurados pelas paredes, fogão, geladeira, armário, cama, cômoda. Era um lugar definitivamente fofo. Também havia flores. Viver Porto Alegre desde aquele pequeno espaço no Bomfim era tudo de bom.

Passado um ano, ela me disse que iria se mudar. Já tinha entregado sua dissertação e havia conhecido um rapaz por quem se enamorara. Fiquei feliz. As coisas iriam se ajeitar. Mas, ela não sabia quando. Então, num fim de semana vim para Florianópolis e ela ficou em casa, como sempre. Na terça-feira, quando voltei, a surpresa. Cinco horas da manhã, ainda meio dormida da viagem enfadonha girei a chave. Era um apartamento vazio. Oi? Sim. Completamente vazio.

Voltei e olhei novamente o número na porta, podia ter me enganado e entrado em outro apartamento, sei lá. Não. Era o meu. E estava limpo. Não havia nem os vasinhos de flor. A garota fora embora e levara tudo com ela. Meus livros, minhas roupas, meus quadros, meus enfeites, computador, roupa de cama, os víveres, tudo. Não ficara absolutamente nada. Nem um fio de linha. Tampouco um bilhete, nada.  Fiquei ali, parada, entre estupefata e triste. Como era possível? Eu havia lhe estendido à mão na sua pior hora. E assim ela retribuía? Meus livros, todos marcadinhos... meus livros, a perda maior. Zaratustra, do Nietzsche, um edição portuguesa, com todas as anotações de uma vida de leitura.

Sem condições de repor todo o mobiliário fiquei no apartamento mais alguns meses, dormindo no chão, ele todo vazio. Foi minha experiência humana mais triste. Fiquei pensando que se ela queria os móveis e tudo mais para recomeçar a vida, poderia ter pedido. Eu daria de bom coração, pois logo sairia de Porto Alegre. Eu já não era muito apegada às coisas, mas esse episódio reforçou ainda mais em mim o desapego. As coisas são coisas. Elas vão e vem, e só importam se são uteis.

Só não superei o lance dos livros. Porque, sei lá...  Para mim, os livros não são coisas, são entidades cheias de cheiros, rugosidades e surpresas. Têm vida ali dentro.

Anos depois, numa manifestação de uma das edições do Fórum Social Mundial, eu vi a garota do apartamento, Tereza, caminhando de mãos dadas com seu namorado, participando da passeata. Por um segundo pensei em abordá-la, pedir meus livros. Mas, deixei pra lá. Ela parecia feliz.  Talvez tenha sido a energia das máscaras originárias que ela levara da parede. E, como dizia minha mãe, “mais tem deus pra dar que o diabo pra tirar”. E assim é.