sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Olá, ceifadora, como vai?



A morte é sempre um soco no estômago, e ela sempre fala mais de nós do que daquele que morreu. Quando ela chega sempre nos surpreende nos fazeres e não fazeres. Por que não disse que amava? Por que não lhe dei atenção? Por que não notei que algo estava errado? Por quê? Por quê? Ou então: ainda ontem o vi e estava tão bem. Ainda outro dia o vi passar e me abanou. É o assombro da finitude, como se não soubéssemos que a ceifadora passaria e passará. Então ela vem e nos confronta. Ou nos abraça.

Nos últimos meses a tenho visto demais. Outro dia passou na Chico Mendes e levou o Dodô, um educador de primeira linha, um lutador popular, um homem de infinita ternura pelo outro. Levou-o de um golpe, manso e rápido. Depois, sussurrou no ouvido no nosso reitor, o Cau, que tomado de tanta dor abraçou-a num aperto desesperado. E se foi, deixando um vazio de espanto. Agora, ela passa bem aqui, raspando minha rua, na rua de cima e leva o Daniel, um companheiro de anos, sempre ali, na frente do convivência da UFSC, vendendo suas pratas e badulaques, ou então pedalando pelas areias do nosso Campeche. Também foi rápida e silenciosa.

E agora, nesse dia gris, me vem essa melancolia.

As pessoas entram e saem da vida da gente assim, de inopino, num átimo. E aquilo que era cotidiano se quebra. Como com o Daniel. Desde quando entrei na UFSC - há mais de 20 anos  - o via por lá. Não éramos amigos, mas dividíamos o mesmo espaço. Eu comprava suas pratas e falávamos de política. Ele sempre foi falador e cheio de opinião. Firme, sempre no mesmo lugar, que era um espaço de pura vida, de agitação, de movimento. Depois, o convivência foi minguando. Tiraram de lá o DCE, o salão de beleza, a galeria de arte, o restaurante, o auditório. Só ficou o correio. E o que era vida, escafedeu. Ele resistiu, no mesmo ponto, ainda por um longo tempo. Depois, desistiu. 

A partir daí era comum vê-lo no Campeche, na praia, no mercado, no ônibus. Negociava vinhos da argentina e vez ou outra eu comprava algum. Era meu vizinho. Sempre parávamos para conversar, colocar em dia a conjuntura. Nada sabia de sua vida, nem ele da minha, mas éramos companheiros, porque dividíamos as mesmas angústias e algumas esperanças.

Agora lá se foi ele com a ceifadora. Que esteja bem no seu céu.  

Existe uma prática entre nós de quando qualquer pessoa morre, se dizer: ah, coitado. Era tão bom! E é assim mesmo. O ser humano é um ser que tende à beleza. Por vezes, ele se perde no caminho, mas sua essência é a boniteza. Por isso que quando a pessoa se vai com a ceifadora, só ficam as belezuras de sua essência original e elas se revelam.

Gosto de pensar que pessoas tão distintas como o Dodô, o Cau e o Daniel tenham essa beleza comum. A beleza original de quem veio ao mundo para brincar no jardim. Alguns conseguem, outros não. Mas, eu cá com minhas crenças, penso que quando a noite cai sobre nossos olhos para sempre, viramos pura alegria. Essa poeira cósmica que brilha ao sol, essa boniteza, essa luz, essa energia. Não há mais bem, nem mal, nem claro, nem escuro, nem dor, nem nada. Só essa luz, essa luz.

É assim que é a vida.