terça-feira, 27 de junho de 2017

Quando os sonhos se apequenam



Ontem, indo para casa, me acometeu o terror. Percebi o quanto a gente pode se acostumar com o que nos impõe o capital. Os particularismos que esse sistema nos apresenta como universais vão se impregnando na gente e, de repente, estamos navegando na órbita dele achando tudo natural.

Pois lá ia eu, no ônibus, tentando dormir, visto que os engarrafamentos em direção ao Rio Tavares já são comuns a toda hora, não mais só em horário de pico. Revira daqui, revira dali e não conseguia acomodar o corpo. Então, me veio o pensamento de que as empresas poderiam melhorar a ergometria dos bancos, permitindo que a gente pudesse se ajeitar melhor. Foi apenas um segundo de vacilo. Mas, foi vacilo. Aprumei o corpo e arregalei os olhos. Mas, como? Não tem que arrumar o ônibus para eu dormir, tem que ter faixa exclusiva para a porra do ônibus levar apenas 15 minutos do centro ao Rio Tavares, como tem de ser. Como é possível que a gente permita que isso siga sem solução, com a vida da gente sendo sugada cada dia mais por esses transporte desintegrado?

Então fui pensando sobre outras coisas as quais nos acostumamos, como se fossem benesses do capital, como os bancos nos espaços de serviço público. O sistema de atendimento é tão ruim, e tem tanta falta de gente, que as filas são gigantescas. Então, o que faz o sistema? Em vez de contratar mais pessoas e tornar o serviço mais eficiente, coloca bancos nas recepções. A gente chega, pega a senha e fica ali, sentado, ordeiramente, esperando pela vez, ainda que o nosso número seja o número 122. E pensamos: ah, que bom que tem um banco. Antes eu ficava em pé.

Ou então a lógica perversa de a gente trabalhar para os bancos, setor da economia que mais tem lucro no mundo. E claro, eles são os mais lucrativos porque todos nós trabalhamos para eles. Nosso salário obrigatoriamente é depositado em banco. Não existe mais o envelope entregue pelo patrão. A pessoa é obrigada a ter uma conta bancária. E, estando no sistema, é obrigada a fazer todo o serviço. A máquina está ali, disponível, mas é a pessoa que tem de preencher os envelopes, fazer as operações. Ah, e claro, ficar nas filas. Mas tudo bem, os bancos também têm assentos de espera. Fico pensando nos velhos, esses seres tão abandonados, que se desesperam na boca dos caixas, sem saber como lidar com todo aquele aparato. E ainda são obrigados a sofrer os olhares de reprovação de toda a gente, por demorarem demais num atendimento que lhes deveria ser prestado pelo banco.

E assim, vamos nos acomodando ao que nos dita o capital. “Trabalhe para nós 24 horas”. É no emprego formal, é no bico do fim de semana, é no banco, é no serviço público, é no posto de gasolina, é sentado em casa, vendo TV. Seja um “self-safe man”, faça tudo sozinho, não dependa de nada, nem de ninguém. E as pessoas vão se deixando escravizar, orgulhosas de sua “autonomia”. Até que, de repente, mesmo os seus desejos são de acomodação aos horrores da exploração, como eu, naquele ônibus, sonhando com um banco mais confortável para enfrentar o absurdo de se levar duas horas num trajeto de 15 quilômetros. Perde-se a visão de totalidade, não se consegue mais enxergar as relações de dominação que nos exploram ao máximo.  


Vai daí a sempre necessária prática do pensar criticamente. Cada imposição do capital precisa ser vista no seu todo, como um braço a mais do sistema tentando te prender. Que ainda sejamos obrigados a suportar tudo isso, vá lá. Ainda não chegou o dia da revolução. Mas, pelo menos, que a gente não se acomode. E que nossa indignação não fique prisioneira apenas no resmungo. Que ela nos mova... Que ela nos mova! 


segunda-feira, 26 de junho de 2017

Sobre a compaixão



Minha formação é cristã, mas eu, ao longo do caminho fui desbravando outros caminhos da fé. Ainda assim, algumas coisas ficam impregnadas na alma. Minha mãe tinha por prática ir, todos os sábados, à missa das sete na igreja matriz de São Borja. Ele entrava, e nós ficávamos com o pai, passeando na praça, ou dando uma volta pelo Passo. Mãe nunca obrigou a seguirmos sua fé, daí essa opção pagã enquanto ela rezava. Mas, havia também a missa na capelinha do hospital, próximo à nossa casa, no sábado à tarde. A gente ia e curtia, porque era uma missa diferente. O padre instigava as pessoas a falar e fazia interpretações bem diferentes dos textos dos evangelistas. Era criativo e prazeroso.  

Uma das interpretações que mais me marcou ao longo da vida foi a do bom samaritano. O cara que levanta o homem caído na estrada para Jericó, e o leva a uma estalagem para que seja cuidado. Varias pessoas haviam passado, mas só aquele homem da Samaria teve compaixão. A estrada, uma das mais perigosas da região, era cheia de ladrões e as pessoas temiam umas às outras. Mas o samaritano não temeu. Enquanto as pessoas pensavam “O que poderá me acontecer?”, aquele homem pensou: “o que poderá lhe acontecer?” Então, generoso, o transportou até um lugar seguro.

Essa é a postura que persigo desde então. O sentimento sobre o outro, caído. O que poderá lhe acontecer? E nessa aflição, estender a mão, cuidar, acolher, independentemente dos riscos.

Não vi os vídeos sobre o tal ator que teve uma recaída e foi filmado na queda. Mas acabei lendo alguns comentários na rede. De doer. Há os que comparam os caídos da cracolândia com o atorzinho branco e rico, tripudiando do segundo. Há os que condenam. Há os que fazem chacota. Há de tudo. Desde a maldade mais pura até a hipocrisia mais fecunda. O ser humano na sua face mais vil. De fato, ali estava um ser humano em escombros, tenha ele a cor que for. Assim como estão em escombros os negros pobres da cracolândia. Unificados na dor e na condição de ser um ser perdido nesse doloroso mundo capitalista.

“O ser humano é a pior pessoa que existe”, dizia, brincando um amigo meu. E outro amigo, o Danilo, é o primeiro a bramir o dedo, negando isso. Não. Não é que o humano é ruim. São as condições históricas que o fazem assim. É o modo capitalista de produção que torna o humano egoísta, insensível, competitivo, invejoso, desprovido de compaixão. Afinal, nesse sistema, para que um viva, outro precisa morrer. Então, o pensamento da maioria é simplista: se um tem que morrer, que seja o outro. E aí, vale tudo.

E essa máxima é bombardeada o tempo todo pela indústria cultural. No cinema, na televisão, nos livros, em tudo. Basta pensar que um programa como o Big Brother está no ar há quase 20 anos. E que sua lição fundamental é basicamente a possibilidade de eliminar o outro. Ah, não gostei da risada dela: elimina. Não gostei do cabelo: elimina. Não gostei que ele disse: elimina. E as pessoas, milhões e milhões – já houve pico de 35 milhões – gastam dinheiro para eliminar o outro. É chocante. Mas, ainda que chocante, é a realidade cotidiana. Assim o sistema capitalista nos ensina fazer. Sempre eliminando o outro, o diferente, o desigual, o que nos ameaça, o que nos obscurece.  

Eu prefiro seguir como o homem da Samaria ou mesmo como El Che, que dizia que enquanto houver uma pessoa injustiçada no mundo, temos de ser companheiros. Pois é. Pode ser branco, pode ser preto, azul, vermelho, amarelo. Pode ser rico ou pobre. Mas se tiver caído, fragilizado, oprimido, o melhor a fazer é levantá-lo, levar à estalagem e deixar protegido. Mesmo que seja um inimigo.

Lembro Fidel Castro que criticou as secretárias que vibravam com o atentado contra Ronald Reagan. Ele as chamou e disse: “Não façam isso. Aos inimigos, temos de enfrentar de frente. Não podemos nos regozijar porque ele está caído. Essa não é uma conduta ética”.

Então, Fidel faria o mesmo que o samaritano na estrada para Jericó. E eu também prefiro fazer. Compaixão, empatia, o coração leve.