terça-feira, 2 de maio de 2017

30 anos - uma vida



Eu tinha acabado de chegar a Florianópolis para fazer a faculdade de jornalismo. Era 1987. Dividia um apartamento, no mítico Itambé, próximo à UFSC, com mais três colegas de aula. Dias duros, sem trabalho, precisando pagar as contas. Então um deles arranjou uma namorada. E ela entrou na minha casa e na minha vida como uma rajada de vento. Era maio. De cara eu não gostei daquela guria magrela, alta, de olhos rasgadinhos e de cabelos radiantes como o sol. “Filha de milico, arg! Boa coisa não pode ser...” Era eu destilando meus pré-conceitos.

Toda vez que ela vinha eu repetia minha cara blasé. De pura nojentice. Não queria criar laços.

Mas, sem eu querer, a guria foi entrando. O namoro com o colega acabou, e a gente seguiu amigas. Ano após ano, construindo uma relação de amor. Conflituosa, às vezes, mas capaz de resistir a todas as tormentas. Ela parece que tem um radar, capaz de sentir desde longe, quando a tristeza me vem. Então liga, e sua voz apascenta minha alma. Sempre foi assim.

Tem uma qualidade única, coisa jamais vista. Ela me liga quando está feliz, quando vive algum momento estelar, quando transborda de contentamento. Como o menininho do texto do Galeano, ela repete o “me ajuda a olhar”, na presença do infinito. Somos capazes de ficar em silêncio quando tudo é grande demais, e podemos morrer de rir de coisas idiotas, que só nós compreendemos.

Nossa amizade é feita de pequenas e grandes coisas, de alguns vazios, de cumplicidade amorosa, de cuidados, tanto na dor quanto na alegria. Ela conhece meus tormentos, minhas escuridões. E nunca foi capaz de se perder de mim, nem quando me faço insuportável.

Desde aquele maio de 1987 vamos caminhando nesse mundo. Separadas geograficamente, mas sempre antenadas com o que se passa da vida da outra. Amizade sólida, pétrea, que não se esboroa.

São 30 anos de bem-querença e eu rendo graças aos deuses por um dia ter deixado aquela compridona entrar no Itambé, no meu coração e na minha vida.

Te amo, Catarina Gewehr, mulher/vento/sol. E te agradeço, por sempre estar...

   

domingo, 30 de abril de 2017

Não é o método, são os motivos



Na Venezuela, "opositores"

 No Brasil, "vândalos"

Certa vez um amigo me dizia que colocar fotos de palestinos mortos nos atos pela Palestina não era bom. Afastava as pessoas. Ninguém quer ver tragédia, argumentava. Eu fiquei muito tempo pensando sobre isso, tentando encontrar outras formas de falar sobre a Palestina ocupada e violentada. Mas não havia. Eu então me perguntava. Mas por que tanta gente assiste a esses programas horríveis, de mortes e tragédias? Se não gostam de vê-las, por quê?

O mesmo se dá com o lance dos vândalos. Quando os que quebram e depredam estão na Venezuela, são “opositores”. Se isso acontece no Brasil, contra a reforma da Previdência, são vândalos. 


Ora, não é preciso a gente ser muito inteligente para se tocar. Não é o método. São os motivos. Se alguém sai às ruas botando fogo em prédios públicos, carros de polícia e machucando pessoas, mas o faz contra o “ditador” Maduro, tudo bem. São até transformados em heróis. Vejam o caso do ex-prefeito de Chacao, Leopoldo Lopez, que é tido como um “prisioneiro político” pela direita mundial. Incitou o povo à violência e foi o responsável por mais de 40 mortes.


Mas, no Brasil, se as pessoas quebram vidros, queimam ônibus, ou se defendem com pedras de uma polícia assassina, são chamados de vândalos. E as carolas destilam seus ódios pelas redes sociais, desejando que jovens morram, porque não deveriam estar na rua lutando contra a ditadura do capital. 


São dois pesos e duas medidas. Noam Chomsky já desvendou essa dupla mirada que existe principalmente nos meios de comunicação. No seu livro “Guardiões da Liberdade” ele mostra como os inimigos dos Estados Unidos são mostrados como bandidos, à exaustão. E os inimigos dos amigos dos EUA também. Já os amigos que fazem coisas ruins, aparecem muito rapidamente, numa nota de roda pé. E olhe lá. 


A questão deve ser vista então sob um olhar de classe. Todos aqueles que lutam contra o sistema capitalista estão a favor dos trabalhadores, tem um lado claro, sem rugosidades. E os que atacam os governos progressistas ou socialistas, mesmo que sejam pobres, estão ao lado da classe dominante. Escolheram um lugar. E não é do lado dos trabalhadores. Preferem seguir comendo as migalhas da mesa do banquete dos patrões. 


Por isso os jovens venezuelanos “guarimbeiros” aparecem na mídia como defensores da liberdade. É uma verdade isso aí. Só que a liberdade que eles estão a defender é a de meia dúzia de milionários que os descartarão tão logo cheguem ao poder. Ou o manterão apenas como subalternos, cães de guarda.


Já a nossa juventude que se arrisca no confronto com as forças da repressão, são os “comunistinhas vagabundos”, os que estão “pedindo para levar”. E se por acaso se ferem gravemente ou morrem, os bons cristão proferem a sentença: bem-feito, quem mandou fazer baderna. E se quebram o vidro de um banco então, deus nos acuda. Pobrezinhos dos bancos. São tão pobres que precisam ter suas dívidas de 25 bilhões perdoadas pelo governo. Claro, o governo pode tirar do trabalhador. 


Então a parada é simples. Não importa como a gente faça a luta. Se nossos motivos forem as lutas contra o capital ou contra a classe dominante, a ideologia que é vomitada pelos meios de comunicação sempre nos colocará como bandidos. Ainda que entreguemos flores, como foi o caso de uma ciclista em São Paulo. Ela ofereceu flores ao prefeito João Dória e ele indignou-se, jogou tudo pela janela. Pois não é que teve gente que achou bom? Na visão dessa gente a garota e seu gesto de paz era apenas “uma ridícula”. Pois é. Insisto: não é o método, são os motivos.




Belchior.. até logo!!!



Eu tinha 17 anos. Tinha acabado de chegar à pequena cidade de Pirapora, Minas Gerais, para onde fôramos meio que fugidos da ditadura militar. Não tinha amigos, não tinha nada além de um velho toca-discos dado pela minha tia Zaíra. Era uma mudança muito radical. Desde o Rio Grande, onde tínhamos uma vida boa, para Minas, passando todas as necessidades. Minha mãe tuberculosa, meu pai tentando sobreviver, e nós, os três filhos, perdidos num universo cultural tão diferente.

Foi ali que eu encontrei o Belchior. Seu disco “Alucinação” tinha sido comprado por mim quase ao acaso. Saída da fronteira com a Argentina, gaúcha, charrua e paysana, sua música “Apenas um rapaz latino-americano” me emocionava demais. Era eu mesma naquela canção. E eu a cantava entre lágrimas.

Cada uma de suas músicas atiçava meu coração e minha mente. Viver coisas novas, amar e mudar as coisas, não ser como nossos pais. Na velha casa da rua Argemiro Peixoto eu sonhava em sair pelo mundo, feito faca, cortando a carne daqueles que eram os vilões do amor. Naqueles dias, passávamos as tarde de sol no Xangô, um bar em frente às duchas do rio São Francisco. E lá também estava Belchior. Olhava aquele rio cheio de caixões e corredeiras e sabia que a vida era muito mais do que estar ali, vendo a água passar.

Um dia, então, peguei minha mochila e saí para o mundo. Nunca mais voltei. Tinha seguido aquela canção do garoto de Sobral. Sabia que era preciso mudar as coisas.

Belchior incendiou minha vida, minha mente, meu caminho. E entre as chamas eu segui, esquivando e esgrimindo as coisas ruins. Toda minha vida teve Belchior como trilha sonora, sempre... E quando ele andou sumido, fazendo coisas doidas, eu sorri. Ah, Belchior! Tu podias tudo, poeta, amigo, louco sonhador, mente inquieta, rebelde. Sentia tua falta, mas tu já eras eterno. Bastava um clique e ali estavas.., Com tua poesia cortante, nos empurrando para frente.

Hoje, quando enfim entendi que já não estavas mais nesse plano, chorei sem parar, horas e horas. Vinhas fazer parte de uma série de perdas que me estão corroendo a alma. Chiquinha, Bartolina e agora, contigo, minha juventude, parte de minha vida toda. O outono da vida me pegou, tantas dores, tantas perdas, inclusive a de mim mesma.

Mas é o mesmo Belchior que nos instiga: Não sou feliz, mas não sou mudo... Hoje eu canto muito mais. As coisas que nos dilaceram, nos corroem, nos paralisam, são parte dessa vida humana, demasiado humana. Mas, é preciso seguir...

Tu encantas Belchior... tua obra gigante fica... E a gente segue, até que chegue nossa hora. Porque a noite eu tenho um compromisso e não posso faltar...