sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Quando a regra é eliminar


Três homens agridem um mendigo em Porto Alegre

As cenas se repetem sem pudores nas redes sociais. Imagens horrendas do massacre em Manaus, homens espancando mendigos em Porto Alegre, outros homens matando um camelô em São Paulo, mais 30 presos mortos em Roraima. E tudo está normal. Normalíssimo. Basta uma olhadela nos comentários. No geral o mantra se repete: "bandidos e pobres – sinônimos – é tudo lixo e precisa mesmo ser eliminado".  

Isso não se configura uma novidade quando vivemos num mundo no qual o outro é sempre visto como inimigo. Nossa sociedade é gerida pela pedagogia do medo. Esse é o caminho “educativo” que os grandes meios de comunicação oferecem. E não vamos esquecer de que os grandes meios televisivos chegam à casa de 97% dos brasileiros.  A pedagogia do medo se reforça todos os dias em programas policialescos, que mostram à exaustão as tragédias humanas. Mas, não quaisquer tragédias. Elas têm classe. No geral são os pobres e os negros matando ou roubando “gente de bem”. Como se só esses crimes fossem dignos de nota. Os crimes dos ricos não saem nos jornais. Por isso mesmo, a sociedade vai criando medo daqueles que se lhes aparece como os “do mal”.

No geral, quando os meios dão destaque a algum crime de rico, impossível de deixar passar, como foi o caso da Richtoffen, que matou os pais, sempre é mostrado como uma patologia. Algo que aconteceu por conta de uma falha na matrix. E a vilã ainda acaba passando por vítima. Já os pobres, não. Eles são condenados mesmo sem provas. Bastou ser pobre e negro e pronto. Já está dada a sentença.  Por isso, torna-se “natural” que as pessoas em geral não se sensibilizem com a morte de pessoas assim, mesmo em condições de selvageria como foi a do presídio em Manaus. Na cabeça da maioria, aqueles eram homens “do mal”, portanto, receberam o que mereceram. Nenhuma reflexão sobre o que pode tê-los levado ao crime, ou se de fato, todos eles era mesmo criminosos. Não. Pobres. Já julgados: “culpados”!

Outro elemento típico da sociedade ocidental é o que incita a eliminar aqueles que causam estranhamento ao senso comum. Não é sem razão que há mais de 15 anos, em todos os países do mundo, fazem estrondoso sucesso programas chamados de “reality shows”, estilo Big Brother, com todas as suas imitações, no qual essa pedagogia do medo pode ser exercitada. É um jogo cruel, no qual o público tem a vida dos participantes nas mãos. Qualquer coisa que o jogador faça pode ser motivo para a eliminação, e as pessoas ainda pagam uma ligação telefônica, engordando o lucro das empresas, para ter o gosto de “eliminar” os que consideram chatos, bobos, metidos ou qualquer outra coisa que venha a atiçar esse lado selvagem.

Não se trata de uma questão moral. Pessoas boas e pessoas más. É uma sociedade inteira sendo alfabetizada no medo, no ódio ao pobre, ao negro, ao homossexual, ao diferente, que, ao fim e ao cabo, nem é tão diferente assim. O jogo real é justamente esse que está fora do jogo da TV, a vida, programada e palmilhada por toda essa ideologia vomitada dia após dia no rádio, na TV, no jornal, na escola, na família. E assim, na vida, diariamente, vamos “eliminando” todos aqueles que nos incomodam. Sem qualquer pudor. Eliminar está legitimado.

Colada a essa ideologia está o próprio sistema capitalista que é, em sua natureza, um jogo de competição e destruição do outro. São os jogos vorazes em ação.  É fundamental que os trabalhadores compitam entre si, se matem até, para que o 1% que domina o mundo siga com sua vidinha de paz e riqueza. Por isso não vê falar nada ruim do mundo dos ricos. Só coisas boas, festas, celebrações, champanhe, viagens, o mundo perfeito. Uma espécie de espelho onde todos querem ver sua face refletida. Só que não é possível. É uma ilusão. Pelo menos não no sistema capitalista que exige o pobre para que o rico exista. Além do mais, esse mundo perfeito é só um quadro do tipo de Dorian Gray. Bonito na aparência, mas na essência cheio de podridão, porque, afinal, se sustenta a partir da vida e do sangue dos outros.

Assim é que entre os que estão na parte abaixo do 1% sempre ouviremos falar que “bandido bom é bandido morto”, que quem morre na favela é porque mereceu, que as chacinas nas comunidades e nas prisões são momentos de “limpeza”. Essa é uma mentira que se faz verdade pelo processo da repetição exaustiva. Poucos se importam em saber por que existe a pobreza, por que pessoas vivem em condições sub-humanas, por que o crime vira uma opção.

Poucas coisas podem mudar esse cenário horripilante, mas cotidiano. Uma tragédia pessoal talvez possa furar a bolha criada pela ideologia dominante. Isso comumente acontece, mas não muda a vida da maioria. Muda apenas a da pessoa afetada. É bom, mas é pouco. Haveria de se arranjar uma forma coletiva de mudar essa forma de pensar. Uma revolução.

Enquanto não construímos essa opção, resta a perplexidade.


quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A democracia no Iraque


Em 2003 os Estados Unidos invadiam o Iraque para dar ao povo democracia e liberdade. O argumento para a invasão era de que Sadam tinha armas químicas e era uma ameaça ao mundo ocidental. Tudo era mentira, como ficou comprovado depois. Desde então, mais de um milhão de pessoas foram mortas. O país está destruído e hoje vive o drama de ter de conviver não apenas com os "mariners" estadunidenses e sua habitual violência, mas também com o "monstro" criado pelos EUA: o Estado Islâmico. No ano de 2016 foram registradas 6.878 mil mortes de civis ou seja, gente que não estava envolvida na guerra propriamente dita. Também há registros de 12 mil pessoas feridas. Dados que são divulgados, fora o que está fora das estatísticas.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sobre velhinhos...


Eu comecei a cuidar de pessoas velhas quando tinha ainda uns 14 anos. Meus avós por parte de mãe foram morar conosco. O vô era agricultor e fora expulso das terras que arrendava. Era um sem-terra e eu nem sabia. Como toda sua vida tinha sido no campo ele não se acostumava com a vida na cidade. Seguido eu o surpreendia no jardim da mãe, mexendo com as flores, a terra escorrendo entre os dedos. Sentia pena e tratava de ir ajudar na tarefa. Não falávamos nada, apenas cuidávamos das plantas, cúmplices. Vez em quando trocávamos sorrisos. Então ele contava alguma de suas piadas. Comecei a ter por hábito vigiá-lo. Caso o percebesse triste, lá ia eu me encostar, feito um gato. Outra coisa que fazíamos juntos era jogar pife. Pelas noites afora. Minha vó também gostava e era o melhor jeito de levar alegria para os dois.

Quando meu vô ficou doente e foi para o hospital, eu entrei em desespero. Não sabia o que fazer para aliviar sua dor. Sentava na cama e ficava a lhe fazer carinho. Em silêncio. Quando ele acordava eu contava das notícias e ele sorria. E de novo voltávamos ao silêncio, só sentindo o toque suave da carícia. Ele se foi poucas horas depois da minha última vista. Até hoje sinto seu cheiro, misto de cigarro e terra.

Depois fomos para Minas e a vó foi com a gente. Também tomei como tarefa cuidar de seu bem estar. Ela gostava de massagens. E eu aplicava todos os dias. Longas sessões com arnica e álcool. Também cuidava de fazer limpeza de pele e preparar as unhas, sempre de vermelho vivo. Nas noites de sábado, nada de balada. Era o pife com a vó. E como ela tinha outro filho morando no Rio Grande, cabia a mim levar e trazer a vó, nas longas viagens de ônibus. Todo o ano fazíamos a jornada.

Quando já fora de casa, trabalhando em Caxias do Sul, consegui alugar minha primeira casa, foi com ela que dividi a morada. Ela dizia cuidar de mim, mas era eu quem cuidava de seu bem estar. Ela gostava de ter sua casa novamente, sem se sentir dependendo dos filhos. Sua maior diversão era reunir as amigas para o pife, e lá elas iam noite adentro enquanto eu servia bolinhos de chuva. Como os tempos eram duros a vida era regrada, mas nunca faltava a música e o vinho. Foram anos muito alegres com a minha vó, sempre ao som do Tijuana Brass.

No final dos anos 80 eu vim para Florianópolis em situação bem ruim. Sem emprego e sem dinheiro, e ainda fazendo a faculdade. A vó já morava com minha tia em Porto Alegre. O tempo passou, a vó encantou, eu segui meu caminho, sozinha. Agora, depois de tanto tempo, revivo as aventuras que tive com meus avós cuidando do meu pai. Ele não está tão velhinho, mas com sérios problemas de memória. Todos os dias são como um eterno retorno. As histórias têm de ser contadas e recontadas. A memória vai e vem. Por vezes ele fica triste e eu fico como ficava diante do meu avô. Sem saber bem o que fazer. Acabo inventando coisas para fazer junto. Regar o jardim, secar a louça, dar um passeio, conversar, comer coisas gostosas, tomar vinho. Também há tempo para risadas e brincadeiras. Fazer massagem nas mãos, cortar as unhas dos pés, tirar os cravos do nariz.

Depois de tanto tempo sem essa missão de cuidar de alguém fiquei enferrujada. Mas já estou melhorando. Cada dia é uma descoberta. Há horas que são tristes, outras não. O melhor caminho ainda é aquele que, intuitivamente, fui trilhando com meu vô Dionísio. Carinho, cuidado, amor. Assim, vou me fortalecendo e garantindo a esse querido companheiro dias de mansidão.

Agora, por esses dias, andamos, ele e eu, a cuidar de nossa cachorrinha paralítica. Enquanto eu arrumo a água e a comida, ele fica do lado da Chiquinha, acarinhando cada vez que ela chora. E faz questão de lembrar a cada hora: Já deu água? Já deu ração? Já deu o remédio?

Fico pensando que o amor é mesmo uma experiência estonteante. Quanto mais a gente dá, mais a gente tem.  


Pequenas delícias do centro de Florianópolis

Rua Felipe Shmidt

Edifício Dias Velho

A ilha que hoje é parte de Florianópolis era chamada de Meiembipe pelos povos originários que aqui viviam na época da colonização. Gosto desse nome, melhor do que o que lembra Floriano. E se há um espaço nessa cidade que me toma por inteiro de amor é o centro. Ô lugarzinho pra ser bom, sô. É cheio de encantos e delícias, que se descortinam num rápido passeio pela Felipe ou Conselheiro.

1- Dias Velho

O Dias Velho é um edifício alto, de 12 andares, construído em 1973, época em que o centro passou por um surto de verticalização. Conserva ainda sua escada original, feita de uma pedrinha cinzenta. Fica no coração do centro e ali é uma profusão de pequenas lojinhas que oferecem os mais variados serviços. Ourives, sapateiros, massagistas, advogados, imobiliárias, sindicatos, técnicos, cabeleireiros, residências, enfim... Tudo o que há. O legal é justamente ir subindo os andares e descobrindo as coisas. Vá com tempo e calma. Mesmo nesses dias de janeiros, não há turistas. Só os locais, que sabem o que por ali se esconde. A fachada não aparenta que dentro do prédio exista aquela babel de mais de 200 unidades. É pura delícia andar pelos diversos pisos com olhos de descoberta.

2 – Os informais

Nas calçadas do centro, agora, é possível encontrar os imigrantes que ainda não conseguiram uma colocação em empregos formais, tocarem suas vidas com vendas informais. São senegaleses, haitianos, equatorianos e bolivianos. Vendem as coisas da moda, que viram febre de estação. Agora, no verão, são os shorts. Estão também em frente ao terminal. Frequentemente gosto de comprar alguma coisa de um e de outro, alternando, para poder conversar. Saber das histórias, de onde vêm, como estão se virando. Vendem bermudas, saias, bolsas, tênis e estão sempre com o coração na mão e alma em sobressalto, esperado pelo fiscal. Se perderem as mercadorias estão de novo na lona. Havia tempos que não se encontrava tantos informais nas ruas. Mas, agora, com a crise, a tendência é aumentar. Os comerciantes, sem compaixão, fizeram até uma passeata visando tirar o pessoal do centro. Ainda não conseguiram. Poderiam dar emprego, em vez de enxotar. Eu particularmente gosto daquela confusão de gente, sotaques e coisas.  

3 – Caldo de Cana

Seja no verão ou qualquer outra estação ali estão as barraquinhas do caldo de cana. Uma fica na pracinha no lado da Praça XV, outra em frente ao camelódromo e mais uma dentro do ARS,  outro prédio coalhado de lojinhas. Há alguns carrinhos espalhados pela Conselheiro também. Seja onde for que bater a vontade, tem um. É só chegar. Os preços vão de um real até quatro. Barato e gostoso. Impossível andar pelo centro e não se deliciar com um.  

Mesmo num dia de calor intenso, quando todos estão na praia, o centro ainda é o melhor lugar do mundo.


domingo, 1 de janeiro de 2017

Até logo, Sérgio...



Ano novo é ritual de passagem e, como tal, não se presta a fotos ou exposições públicas. São coisas que fazemos dentro de nós, no recôndito do sagrado. Por isso, escapou-me a triste notícia do encantamento de Sérgio Grando, nessa virada do tenebroso 2016. Na radiante manhã desse 1 de janeiro, fui ver as mensagens e lá estava essa, solitária, num dos aplicativos que a isso se dedicam. Sei que a morte é limiar para outro universo, tempo em que o corpo volta a ser só energia. Ainda assim, a ceifadora sempre nos toca, porque nos lembra – impávida – de que nossa hora também vai chegar.  Por isso choramos. Pelo que se foi e pela pena que nos dá saber que também nós iremos...

Grando não era meu amigo, mas era um companheiro. Com ele trabalhei no tempo em que foi prefeito. Naqueles dias, convidada pelo querido Luis Sabanay, fui fazer o trabalho de divulgação da proposta de Orçamento Participativo, incorporada ao programa da então Frente Popular. Tinha como parceiro o agora precioso amigo Raul Fitipaldi. Esse incrível trabalho que veio da plataforma do PT mergulhava na vida dos bairros, das comunidades, e com os moradores discutia e decidia como o orçamento da cidade seria usado.

Foi uma experiência monumental. Com reuniões em todos os cantos de Florianópolis, podíamos testemunhar a democracia participativa se fazendo real. Não foi coisa fácil, afinal, aquela era a primeira vez na história do município que a prefeitura olhava para os moradores como sujeitos da cidade. Em princípio, tudo era visto com muita desconfiança, mas, na medida em que avançava, a participação crescia. As pessoas decidiam qual rua era prioritária para calçar, se o melhor era colocar esgoto, se precisava melhorar a mobilidade. Um exercício de participação único e generoso.

Também pude testemunhar a subida do primeiro ônibus no Mont Serrat, no maciço do Morro da Cruz. Durante décadas, o povo das comunidades dos morros vivia a dureza de carregar suas compras e seus corpos, ladeira acima, sem que ninguém se importasse. O Grando se importou e colocou os micro-ônibus para fazer as linhas nos morros. Lembro como se fosse hoje dessa primeira viagem, que foi gratuita. A alegria inenarrável dos meninos, com a cabeça para fora da janela, acenando para as famílias que assomavam nas janelas, olhando espantadas, o ônibus subir, subir, subir. E as senhorinhas mais velhas, com suas sacolas de supermercado, rosto em festa. Dentro do ônibus, com eles, ia o Grando, rindo o mesmo riso de criança. Até hoje essa cena me emociona, porque era tão pouco. Uma decisão quase pueril, mas que nunca, ninguém, havia tomado.

O Grando não era fácil também. Turrão e teimoso. Tínhamos divergências, na prefeitura e depois. Mas, uma coisa é certa. Ele amava a cidade e, mais que tudo, tinha respeito pelas pessoas. Durante o seu mandato, elas, as pessoas, foram o seu foco. Era para a gente de carne e osso, a maioria, que ele governava. Isso fazia dele um prefeito especial. E como diria Lula, “nunca antes nessa cidade”, alguém administrou com esse olhar.  

Há pouco tempo o vi, andando na Felipe Schmidt, achei que ele estava um pouco magro e até comentei com minhas amigas. Não sabia que estava doente. Vestia uma roupa toda branca, como se fosse um caribenho. E, ao longo da sua caminhada pelo nosso/dele amado calçadão, ia cumprimentado as pessoas. Parou nas mesinhas de dominó, falou com um ou outro. E os manés históricos, entre uma olhada nas pedras do jogo e outra no homem que passava, sorriam e gritavam seu nome. A oligarquia que domina a cidade não permitiu que ele se elegesse outra vez prefeito, mas a vida real mostrava que as gentes sabiam muito bem que aquele era um homem que havia feito muito pela nossa capital. Ele estava na memória e no coração.

Naquele dia, enquanto observava seu passeio demorado pelo calçadão cheguei a pensar: “tenho que escrever algo sobre o Grando”. Não o fiz. A ceifadora agora me faz recorrer a essa lembrança. Por isso cuido para homenagear as pessoas que amo quando vivas. Porque depois que partem, já não lhes importará mais.

De qualquer sorte fica aqui o registro. O eterno professor de matemática, que mais parecia um urso, ainda que com generosos olhos, já não está mais. Não foi um ser perfeito, teve seus equívocos. Mas, nunca traiu a gente que o elegeu. De fato, nos quatro anos que foi prefeito cumpriu o que prometeu, coisa difícil de encontrar na política. E quando saiu da prefeitura deixou a cidade melhor. Construiu uma linda trajetória.

Fica o meu carinho para a família, especialmente para minha amiga Silvinha, parceira de lutas e de vida. A morte não é o fim, ela é só uma mudança de roupa. Grando cumpriu. E deixou sua marca. "Saúde e felicidade a todos", era seu cumprimento tradicional e inesquecível. Tomara que um dia isso se cumpra para todos nós que vivemos na velha Desterro. 

Valeu, compa!!!!