sexta-feira, 20 de março de 2015

Escravos de Jó
































Quando eu era bem pequena havia uma canção que a gente sempre entoava nas brincadeiras de rua. Cansada das peraltices e correrias, a gurizada sentava na beira da calçada e fazia o jogo com as mãos, cantando.

Escravos de Jó, jogavam caxangá,

Escravos de Jó, jogavam caxangá.
Tira, bota, deixa o Zé Pereira ficar...
Guerreiros com guerreiros, fazem zigue zigue zá,
Guerreiros com guerreiros, fazem zigue zigue zá.

Naqueles dias, a gente nem sabia que essa quadrinha era originária do continente africano, trazida para nossas vidas pelas gentes que foram sequestradas de seus países para servirem de escravos por aqui. A cantiga fala de Jó, um personagem bíblico que ao longo de sua vida perdeu todas as riquezas que tinha – inclusive os escravos – mas nunca perdeu a fé. Para nós, crianças, aquela algaravia não tinha sentido literal, o que valia era o ritmo e a sincronizada bateção de palmas.

Eu, sempre minhocando coisas na cabeça, perguntava para minha mãe: mas, como os escravos ficavam jogando? Como eles podiam ficar brincando, sendo escravos? E se eram guerreiros, por que não faziam uma luta para sair da escravidão? Minha mãe não sabia o que responder, me olhava, assustada e dizia: vai brincar, guria. E eu via que ela mesma ficava a cismar.

Hoje eu me ocupo com algumas postagens na famigerada rede social, de um povo falando do beijo lésbico de duas mulheres velhas na Globo. Os comentários dizem de um grande avanço no campo dos direitos humanos, já que em rede tão oligopólica, isso pode ajudar a reduzir o preconceito contra os homossexuais. E mais, historizam o fato de que também a Globo já protagonizou o beijo entre Félix e Anjinho (dois homens), duas mulheres jovens e entre outro casal gay (também homens) na mais recente novela de igual horário. Tudo é celebrado como uma vitória dos direitos. Será? É essa maldita minhoquinha, voltando a roer meu cérebro.

De saída, penso que ninguém deveria celebrar a Globo. É uma rede oligopólica, que nasceu sob o manto do regime militar, disposta a criar uma “identidade nacional” tal como queriam os ditadores. Serviu a esses senhores e segue servindo à classe dominante. Nada do que dizem ou fazem está descolada dos interesses dessa gente. Como dizia Brizola, o povo é quem deveria ter o controle das concessões de rádio e TV. Enquanto o éter estiver na mãos dos graúdos, nada de bom – pelo menos para nossa classe - pode vir dali.

Os decantados beijos-gays devem ser vistos dentro de seus contextos, pois, no geral, os casais das novelas são ricos e bem-nascidos, logo, bem menos sujeitos à violência e ao repúdio. Não aparece nenhuma discussão de classe. Não precisa, porque a Globo não quer discutir o tema, apenas quer ganhar um público específico da Record, que por ser de uma igreja, rejeita a homossexualidade. É tudo um jogo de interesses, mas os interesses de uma determinada classe, que não é nossa, dos trabalhadores. É a de quem é dona dos meios de produção. Os que nos exploram.

Por isso lembrei da musiquinha dos escravos de Jó. Pois é o que me parece. A platinada omite as lutas sociais, criminaliza os pobres e lutadores, esteriliza a pobreza, mitifica a miséria, ajuda no processo interminável de opressão sobre os trabalhadores e ainda recebe aplausos por conta de um beijo gay? É como se ali estivessem os escravos de Jó, jogando caxangá, enquanto têm as suas vidas sugadas no sistema de mais-valia ideológica. Quando permanecem ligados à roda do consumo, sonhando comprar a marca da roupa da mocinha da novela, ou cortar o cabelo no modelito atual da Glória Pires.

O mesmo me parece que ocorre com a presença dos negros nas novelas da Globo. Cada vez tem mais. Mas qual é o destino de cada um? Agora eles até saíram um pouco do esteriótipo empregada doméstica/garçom/motorista. Já tem negro publicitário, jornalista, artista e até protagonista. Mas qual é a mensagem final desses personagens? No geral, esses que fogem do típico, sempre acabam se conformando nas formas do sistema. Ficam ricos e se vingam, galgam postos de mando e deixam de sofrer preconceito. Tudo parece se resolver com a ascensão financeira. Negro rico é palatável, bem como gay rico também. Ah, a classe...

A novela é um folhetim, não precisa ter mensagem nem fazer formação política, diriam alguns. É pura diversão, sensação pós-moderna. Discordo. Basta lembrar que grandes autores críticos fizeram história com seus folhetins, tais como Vitor Hugo, do clássico “os miseráveis”, que foi publicado em capítulos nos jornais franceses. Ou ainda, para citar alguns brasileiros, figuras como Lima Barreto e Manuel de Macedo, também publicados como folhetins. Logo, o problema não é a novela em si, mas o que se traz para publicar na novela. Os autores, sua visão de mundo, seu pensamento alinhado com a classe dominante.

Nesse sentido “democratizar a comunicação” precisa avançar muito mais do que simplesmente colocar mais negro, mais gay, mais pessoa com deficiência, mais beijo, mais isso, mais aquilo. Democratizar a comunicação é mudar o giro do poder. Quem decide o que vai ao ar? Quem produz? Ou isso ou seguiremos, freneticamente cruzando as mãos, como os escravos de Jó. Alegres, mas escravos ainda! ... 

Cruz e Sousa, ainda sem descanso

























A imagem é de abandono. No jardim do belíssimo palácio, que já serviu de abrigo aos governantes de Santa Catarina, um pequeno espaço foi construído há oito anos para receber os restos do poeta mais importante do simbolismo brasileiro: Cruz e Sousa. A ideia era tornar o memorial um espaço de consulta de sua obra e também de outras obras que falassem do seu trabalho poético. Mas, nada saiu do papel. O lugar onde deveria estar a biblioteca e informações sobre o famoso poeta está abarrotado de lixo e móveis velhos. O piso, de tábuas soltas, está interditado, pois pode desabar a qualquer momento. O painel de mármore, que abriga os restos do poeta, é a única coisa que persiste, impávido, numa resistência muda contra o esquecimento. Uma vergonha para Santa Catarina que Cruz e Sousa seja tratado assim, apesar de viver nas bocas das personalidades políticas da cidade. È como se, de novo, seu corpo fosse jogado entre os bichos, como quando ele morreu em Minas e foi transladado para o Rio, atirado dentro de um vagão destinado aos cavalos. 

Para denunciar esse descaso, militantes do Movimento Negro Unificado de Florianópolis, apoiados pelo mandato do vereador Lino Peres (PT), realizaram nesse dia 19 de abril – data que marca 117 anos da morte de Cruz e Sousa – um ato/protesto em frente ao memorial, nos jardins do Palácio que leva o nome do poeta. Como bem lembrou Maria de Lurdes Mina, a Lurdinha, do Movimento Negro Unificado, as condições do memorial do maior poeta do simbolismo concretizam o racismo da sociedade catarinense. Cruz e Sousa era negro. Seria por isso que sua memória estaria tão aviltada? Comparando com os cuidados que se têm com o Museu Vitor Meirelles, que reverencia um dos mais importantes pintores catarinenses – branco – Lurdinha pôs em relevo a qualidade do material da obra. “Em oito anos anos, o memorial cai aos pedaços, sem cuidado, sem manutenção. Não que o museu de Meirelles não mereça, mas esse memorial foi abandonado. É chegada a hora de os negros ocuparem esse lugar”. 

Iluminadas por lampiões e pelas luzes da rua, foram ecoando as vozes negras, um clamor na cidade de cimento, tão forte como a poesia rica desse homem único que expôs em verso o amor e a dor. 

“Ao menos junto dos mortos pode a gente 
Crer e esperar n'alguma suavidade: 
Crer no doce consolo da saudade 
E esperar do descanso eternamente. 
Junto aos mortos, por certo, a fé ardente 
Não perde a sua viva claridade; 

Cantam as aves do céu na intimidade 
Do coração o mais indiferente. 
Os mortos dão-nos paz imensa à vida, 
Não a lembrança vaga, indefinida 
Dos seus feitos gentis, nobres, altivos. 
Nas lutas vãs do tenebroso mundo 
Os mortos são ainda o bem profundo 
Que nos faz esquecer o horror dos vivos.”

Filho de escravos alforriados Cruz e Sousa teve a sorte de contar com uma educação refinada, proporcionada pelo antigo “dono” de seus pais. Chegou a estudar com Fritz Müller, com quem aprendeu matemática e ciências naturais. Mas, logo sentiu o chamado da escrita e seu caminho natural foi o jornalismo. Dirigiu o jornal Tribuna Popular, no qual usava sua pena para combater a escravidão e o preconceito. Apesar de “estudado” sofreu na carne o racismo mais vil, sendo recusado para o cargo de promotor em Laguna unicamente por ser negro. Desiludido com sua terra natal, que lhe barrava a vida por conta da cor, foi para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil. O emprego lhe permitiu uma folga para escrever e produzir seu mais belos poemas. 

Casou e teve quatro filhos. Mas, ser negro no final do século 19 não era fácil. A vida se arrastava em misérias. Seus filhos morrem de tuberculoso e a mulher, gavita, enlouqueceu, também morrendo em seguida. Ele também, mergulhado em tristeza, ficou tuberculoso. Buscou tratamento em Minas Gerais, mas a ceifadora não o poupou. Morreu no 19 de março de 1889. Seu corpo, embrulhado num pano, foi jogado num vagão de cavalos, para que chegasse no Rio de Janeiro onde foi sepultado por poucos amigos. Só em 2007 os seus restos mortais foram trazidos para Santa Catarina, ocasião em que se construiu o memorial, nos jardins do palácio Cruz e Sousa. E, hoje, por ironia – ou por racismo mesmo, conforme foi denunciado – sua memória está ali, jogada, de maneira vil, sem o cuidado que merece. 

Na fala dos militantes que se manifestaram, uma certeza: o memorial não pode ficar como está. O governo do Estado terá de garantir os recursos par a recuperação e para o uso do espaço, que precisa ser visitados por estudantes, para que as novas gerações conheçam aquele que é cantado na Europa como o maior poeta simbolista do mundo, e que, na sua própria terra, é esquecido entre tralhas e abandono. 

O grito do povo negro fez-se dança, na capoeira, e fez-se música, na voz dos integrantes da velha guarda das escolas de samba Coloninha, Protegidos e Copa Lord, que se uniram para reverenciar o poeta. “Vai amanhecer, as flores vão crescer e enfeitar a cidade. E, sem repressão, o povo vai abrir o coração para a liberdade”, explodiu a música de Carvalhinho, enquanto o corpo malemolente do seu Lidinho bailou na noite. Foi um momento único. Na bruxuleante luz do lampião, a noite negra apontou “o assinalado”, o cisne negro, Cruz e Sousa, nosso poeta maior. E os que vieram se arrepiaram, cantaram e dançaram para ele. 

“Tu és o louco da imortal loucura;
O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma desventura extrema;
Faz que tu'alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o poeta, o grande assinalado;
Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco á pouco.

Na natureza prodigiosa e rica,
Toda a audácia dos nervos justifica,
Os teus espasmos imortais de louco.”

Cruz e Sousa, por ele mesmo. E, para os que celebraram essa vida linda, ficou o compromisso: dar vida ao espaço, ocupar e produzir cultura.  

quarta-feira, 18 de março de 2015

UFSC mostra uma cara nada democrática



Reunião do conselho universitário discutiu regras da eleição para a reitoria

O conservadorismo que volta a se mostrar de forma explícita nas ruas e nas redes sociais, também se apresenta na UFSC em todas as suas cores. E, nada melhor do que uma reunião do Conselho Universitário para se perceber isso. Na terça-feira, dia 17, a discussão foi sobre as eleições para a reitoria. Desde há meses vêm se movimento pela universidade um grupo de professores que quer o retorno da porcentagem 70/30 para a escolha do reitor ou reitora. Os professores pregam a “legalidade” uma vez que a Lei de Diretrizes e Base determina que os professores tenham peso maior no processo decisório, garantindo a eles 70%, com os técnicos administrativos e os estudantes dividindo os 30% restantes.

A LDB, como sabem, foi votada nos anos 90, com um substitutivo do então senador Darcy Ribeiro, que atropelou mais de 20 anos de discussão e construção coletiva. Nesse substitutivo foi mantida essa regra inconstitucional, pois não há nada que justifique o voto de alguém valer mais ou menos. Que justificativa pode ser apresentada para que os professores sejam considerados “superiores” a técnicos e estudantes?

E foi justamente essa resposta que se tentou responder no Conselho Universitário. Qual argumento plausível para que o voto do professor valha mais? Não faltou quem respondesse com clara tranquilidade. O professor Daniel Martins defendeu que os professores decidissem a vida da universidade porque era assim que acontecia nas universidades de ponta de todo o mundo. Também defendeu a meritocracia, dizendo que um docente que estudou mais tinha mais direito do que quem estudou menos. E também comparou a universidade com a família, apontando que na sua casa não havia democracia. Chegou a dizer que se orgulhava da meritocracia, ratificando que preferia trabalhar numa universidade estrangeira de qualidade – onde os professores definem o administrativo – do que numa universidade do Amazonas.

O professor Rogério Portanova também defendeu que mesmo entre os professores deveria haver diferença. Um professor iniciante – argumentou – vale menos do que um com doutorado. “A democracia garante igualdade de tratamento, mas temos de levar em conta o mérito”. E bueno, se até entre os seus pares ele defende diferença no voto, que sobrará para TAEs e alunos?

Outros não foram tão explícitos e verdadeiros como os professores mencionados, mas, seja no silêncio ou nas falas dúbias, também defenderam que os professores são os mais capacitados para definirem os destinos da universidade. E o argumento é o mérito pelo estudo. Um argumento furado, pois não é o estudo em determinada área que faz de alguém capaz de administrar uma universidade. E, não bastasse isso, a democracia é uma bandeira tão defendida que até mesmo o MEC já acatou em vários documentos a consulta informal – eleição realizada pelas entidades – como legítima para a escolha do reitor ou reitora.

Outros conselheiros defenderam o voto paritário como um degrau na consolidação da democracia dentro das universidades. Os votos das três categorias valendo de maneira equitativa, 1/3, 1/3 e 1/3. Isso significa que há um melhor equilíbrio de forças ainda que o voto dos professores siga valendo mais do que o de um técnico e o dos técnicos mais do que o de um estudante.

E ainda houve quem defendesse o voto universal, como os técnicos e os estudantes, para quem uma pessoa vale um voto, sem qualquer diferenciação. Não há argumento que se sustente na defesa do voto majoritário dos professores. Dizer que os alunos são passageiros e não teriam interesse no processo é uma mentira. Quem faz um curso superior está sempre conectado a sua universidade, pode voltar, fazer uma especialização, uma pós-graduação, se importa com o seu destino. Os trabalhadores técnico-administrativos estão na instituição pelo mesmo tempo que os professores e estão cada vez mais qualificados. E mesmo que não aprofundassem os estudos, quem garante que eles não teriam capacidade para definir um voto? O professor Paulo Horta chegou a dizer que os estudantes e os técnicos não eram “engajados o suficiente” para ter peso igual ou equilibrado com o professor. Depois, confrontado pelo TAE Luciano Agnes, redefiniu sua fala dizendo que era preciso haver paz entre as categorias. Mas, enfim, quem está fazendo guerra?

Os estudantes também se manifestaram mostrando as incoerências dos argumentos meritocráticos. “Que qualidade pode ter um professor que forma um aluno que ele mesmo considera incapaz para o voto?”, E lembraram que o Conselho Universitário, enfim, não é o campo das lutas. Ali, onde também imperam os professores em maioria avassaladora, não é espaço democrático. As grandes batalhas se dão com a mobilização dos estudantes e trabalhadores.

E a tarde caminhou nessa interessante batalha de ideias, a qual teve também ameaças veladas de intervenção via justiça, caso se votasse pela consulta informal e paritária, como sempre foi na UFSC. Falou-se ainda em instabilidade institucional e coisa do gênero, bem ao gosto do mais espantoso conservadorismo.

Ao final havia três propostas na mesa. Uma que orientava a eleição informal e paritária, conduzida pelas entidades, outra que arquivava o processo, deixando sem qualquer indicação o tema e outra que reivindicava que o Cun fizesse a consulta formal – o que pela lei teria de ser com o percentual 70/30. Como a terceira proposta ficou dúbia, porque não se sabia que se propunha o 70/30 ou se orientava para o paritário, fez-se a votação – nominal - das duas propostas iniciais. O resultado foi 28 votos para a proposta da consulta informal e paritária, e 15 pelo arquivamento. A terceira proposta acabou não sendo votada pois se entendeu que já estava superada com a primeira votação, que indicava as entidades para comandar o processo.

Com essa decisão, a eleição para a reitoria da UFSC segue sendo como sempre foi, organizada pelas entidades. Mas, a história parece que não terminará por aí. A Apufsc, que representa os professores é quem está puxando a retomada do 70/30 e já divulgou que não participará. Outros falam em buscar na justiça a aprovação para a eleição em 70/30. O grupo de alguns “iluminados” professores da UFSC insiste que os mesmos são mais iguais que os TAEs e os estudantes. Essa guerra ainda promete muitas batalhas.

A reitora Roselane Neckel, bem como os pró-reitores votaram pela proposta um, de consulta informal e paritária.

Para quem vive o cotidiano da UFSC, esses debates de fundo que o Cun realiza são realmente fabulosos, porque permitem que as ideias se expressem com claridade, mostrando como ainda falta muito para que a democracia realmente seja entendida como um espaço de igualdade, de respeito pelo outro e de liberdade.


terça-feira, 17 de março de 2015

O mundo facebook



Assisti outro dia o filme que conta a história do garoto que criou o facebook. Na visão de quem fez o roteiro, ele aparece como um jovem frio, calculista, que passa por cima de todo mundo, inclusive dos amigos, para viabilizar seu projeto de rede social. Não sei se essa é a verdade sobre Mark, mas penso que sua criação segue um pouco dessa ideia. O tal do "face" é hoje, para além de uma ferramenta que pode unir pessoas e ideias, um espaço de mentiras e manipulações. É um labirinto no qual se anda sem o fio de Ariadne, logo, podendo ser devorado pelo monstro a cada passo.

O facebook é, obviamente, um espelho da  existência do mundo moderno, capitalista. Tempos do "último homem", como diria Nietzsche, na sua avassaladora crítica à modernidade. Para o filósofo alemão, chegaria um tempo em que o ser humano só faria aquilo que quisesse, sem levar em conta nem a ética, nem a moral. Um tempo anômico, sem normas ou regras. Apenas o querer individual, a vertigem da sensação. É o que temos. Mas, claro, isso não é para todos. É para quem pode ter acesso a esse mundo virtual. Há que se levar em conta que o "mundo encantado" das redes sociais não chega em quase 5 bilhões de pessoas no mundo. Segundo dados da União Internacional de Telecomunicações, apenas 35% dos habitantes do planeta têm acesso à internet.  Existem pessoas que sequer fizeram sua primeira ligação telefônica, que dirá ficar de folga no face. Então, quando pensamos a realidade das redes, há que levar em conta isso. 

Mas, para os 35% que já consomem os serviços dos servidores mundiais, conectados às redes mundiais, o universo passa a ser definitivamente virtual. É quase como uma "segunda vida", dessas que os programinhas de jogos já inventaram faz algum tempo. Só que, no caso do face, tem aparência real do real. E, muitas vezes se faz real, de verdade.

Coisas que até pouco tempo só eram ditas no recôndito das casas, entre amigos muito íntimos, de confiança, hoje são alardeadas em nível mundial, sem qualquer prurido. É o tempo vale-tudo, como nas lutas de MMA. Aparecem os discursos da violência, do ódio, do preconceito. Não há barreiras para nada.

E, nesse universo de mundos inventados, a realidade pode ser manipulada ao prazer de cada um. Alteram-se fotos e o discurso ganha concretude de verdade, até porque ainda existe uma certa ideia de que a fotografia é um documento do real. Bom, não é mais. Qualquer criança de mais de 10 anos já domina o fotoshop ou outro programa de manipulação de fotos. A pessoa fica bonita, ou feia, os lugares ficam mais coloridos, põem-se coisas, tiram-se outras. A foto não é mais documento. Ela é lugar do querer egóico do último homem. Não se pode mais crer.

Se alguém pensava que a televisão - por ser um espaço onde não há interação - era manipuladora, parece não ter a real noção do que sejam as redes sociais. A interação não garante a veracidade. Um denúncia de um ato no Irã pode não ser verdade, pode ser apenas uma criação, uma junção de imagens de outras épocas ou fatos. Mas, vira verdade quando alguém a joga na rede e ela viraliza segundo os interesses das forças políticas. 

Sou jornalista e esse é um tema que me toca profundamente. Venho de uma geração na qual a dobradinha repórter/fotógrafo fazia toda a diferença. Estar num lugar e ter a foto do fato era tudo que se poderia querer. A foto e a imagem eram a prova cabal de que algo realmente acontecera.  Hoje, estamos nesse tempo fluido, difuso, manipulador. Nada mais prova nada. Tudo pode ser fake. É como andar na corda bamba sobre o penhasco. Cada palavra, cada imagem precisa ser checada e re-checada. Mas, isso não é mais suficiente. Porque uma vez divulgada a foto manipulada, mentirosa, já ninguém mais a consegue parar. As pessoas acreditam naquilo que sua capacidade cognitiva consegue abranger. Pode-se mostrar a foto verdadeira e nada muda a realidade. 

Os Estados Unidos usa muito esse sistema para alavancar suas decisões de guerra e domínio. Um exemplo claro disso - contemporâneo - foi a informação de que o Iraque tinha armas químicas e estava pronto para usar. Especialistas viralizaram a informação, inclusive com "fotos" dos lugares onde estavam armazenadas as supostas  armas. E o mundo inteiro acreditou. Lá se foram então os soldados para derrubar Sadam, o sanguinário. Tempos depois, bem depois, os próprios especialistas que denunciaram as armas químicas revelaram que não havia arma alguma. Mas, já não importava. Sadam tinha sido derrubado, o Iraque invadido e a vida naquele país já tinha se transformado num novo inferno, tão cruel ou mais do que havia no governo de Sadam. 

Hoje, com as redes sociais, esse efeito cascata potencializou. O que entrava na vida das pessoas apenas pelo rádio ou televisão, agora entra também no cotidiano das redes. E a mentira passou a ser prato da casa. Fica então difícil demais mover-se nesse universo e também na vida. O que é real? O que não é? 

O filme Matrix - o primeiro - traz algumas respostas. Há várias versões da realidade. E, como diria Wittgenstein, "o mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes". Conhecer e compreender a realidade requer esforço, trabalho braçal. Requer desgrudar a bunda da cadeira e caminhar nas ruas, na vida mesma, olhando as pessoas, falando com elas, percorrendo os recônditos das cidades, vasculhando os esgotos, os lixões, os apartamentos, as mansões. Há um operativo em curso, que hegemoniza as sociedades, há um sistema atuando, fortalecendo a histeria do medo, da violência, da negação do outro, da busca pelo prazer individual. Há tantas coisas para serem entendidas antes de sair condenando esse ou aquele por suas escolhas e atos.

Assim, o facebook , sendo esse espaço de mentiras e manipulação, deveras não me assusta. O que realmente me assusta é saber que ele é apenas espelho do mundo em que vivemos. Tanto que ali, vez ou outra também aparece a realidade real, a vida sem manipulação, o sentimento verdadeiro, o desejo de alteridade, de respeito e de amor. Mas, como na vida mesma, essas são coisas raras. E, como na vida mesma, temos de garimpar, medir, escrafunchar, com muito cuidado, para não cair na armadilha da matrix.

A humanidade, com tanto tempo de existência, parece mesmo não avançar. E os "felizes" seguem suas vidas, incapazes de perceber que há muito mais coisas no mundo do que suas Vans com vidros blindados. 



segunda-feira, 16 de março de 2015

E lá vêm as Olimpíadas...


























O Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) publicou no ano passado dois importantes livros para pensar os grande eventos esportivos que acontecem no mundo, particularmente a Copa do Mundo, que em 2014 foi no Brasil, e as Olimpíadas, que virá para nosso país em 2016.

O primeiro deles é o "Copa do Mundo na África do Sul: um legado para quem?", organizado pelo sul-africano Eddie Cottle, que esteve nas Jornadas Bolivarianas - 9 edição , encontro anual do Iela que discutiu os mega eventos. Nesse trabalho, vários estudiosos do tema apresentam análises profundas sobre o que ficou de legado para o povo da África do Sul, a realização da Copa do Mundo por lá. Toda a história da organização do evento e os resultados são muito parecidos com o que aconteceu no Brasil.

O segundo livro é o "Megaeventos Esportivos - suas consequências, impactos e legados para a América Latina", organizado por Paulo Capela e Elaine Tavares, que reúne as conferências da Nona Edição das Jornadas Bolivarianas, com reflexões sobre quais são os interesses que perpassam a realização desses grandes eventos do esporte.
A leitura desses dois livros pode ajudar na formulação de um pensamento crítico acerca das Olimpíadas que já se aproximam.

Os livros podem ser encontrados no Iela. Faça seu pedido pelo email: iela@contato.ufsc.br