sábado, 15 de novembro de 2014

Armandinho – um sopro de esperança


Alexandre Beck - o pai do Armandinho

Num país onde o colonialismo mental é a regra, ele é a melhor coisa que aconteceu nos últimos anos. Armandinho, o gurizinho sorridente que, tendo um sapo por amigo pessoal, faz e diz coisas que nos enchem de ternura. O personagem é criação de um florianopolitano, Alexandre Beck, que hoje vive em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

Agrônomo, publicitário e ilustrador, Alexandre juntou toda essa diversidade de formação para dar vida a esse personagem que é todo pureza, coisa que vive nele também a considerar sua carinha sapeca, ainda que passando dos 40.

As tirinhas, divulgadas pela página do facebook, viraram um febre nacional, muito possivelmente por conta de sua delicadeza diante da vida. Na linha de mitos como Calvin e Mafalda, Armandinho desvela esse mundo infantil que nunca deveria sair de nós. Sua alegria/leveza/doçura nos atravessa como uma espada flamejante a pedir que o coração assuma a condução do barco da vida. E é o que fazemos.

Armandinho desperta em nós todas as coisas boas que existem no humano e que vão se petrificando conforme a vida corre. Assim, se debruçar sobre as tirinhas é fazer esse movimento de amolecimento da crosta, permitindo que a criança que fomos volte a viver. E, sem que nos demos conta, através de suas pequenas travessuras e rompantes de belezas, vamos ficando melhores. O sorriso se abre, a lágrima cai, a ternura brota.


O Armandinho já é eterno. Viverá para sempre...




terça-feira, 11 de novembro de 2014

O terror da aparência



Gosto de ver televisão, um instrumento comunicativo que, para mim, é constituído de profunda magia. Incrível pensar que milhares de pontinhos de luz possam gerar a imagem em movimento. Uma piração. Não foi à toa que o início da minha profissão de repórter tenha sido na caixinha feiticeira.  Fazer TV, ver TV, coisa que me encanta. Por ali pode-se encontrar a porta para um mundo de belezas.

Mas, por conta da indústria ideológica que se apropriou desse veículo, é na TV também que a gente pode observar as piores ideias e maldades humanas sendo disseminadas à exaustão, formando e formatando cabeças vazias de saberes.

Ontem, lentamente eu passava os canais tentando encontrar alguma maravilha. Talvez um filme com o Ricardo Darín, uma coisa que me elevasse a alma, uma vez que tentava tirá-la do submundo de dor. Mas, acabei mergulhada em mais uma dessas barbaridades que fazem com os seres humanos em nome de uma "pedagogia da beleza", típica do capital.

Era um desses programas em que alguém da família escreve pedindo ajuda a um especialista de moda para alguém que eles consideram malvestido ou brega na sua forma de ser no mundo. A pessoa em questão era uma mulher negra, muito linda, um pouco gordinha, que usava umas roupas bem despojadas, largas e confortáveis. Tinha um cabelo cacheado, bem armado, e seu sonho era criar um entidade para recolher crianças das ruas. Já fazia isso, mas sem estrutura.

A apresentadora do programa foi chamada para "arrumar" a mulher. Segundo os familiares: "quem iria dar dinheiro para a entidade vendo uma mulher tão malvestida?" Ela não se dobrava. Dizia que era assim que se sentia bem, no conforto. A apresentadora forjou então um grupo de investidores que ouviria o plano da mulher para a construção da ONG. Mas ela teria de apresentá-lo escondida. Todos ouviram. "Quem ajudaria esse plano?" -  perguntou a modelo. Todos acenderam a luz. Apostariam dinheiro na proposta generosa da mulher.

"Agora entra, fulana", disse a apresentadora e lá veio a mulher, toda bonita com suas roupas largas, botina surrada e cabelo afro. "E agora, quem financiaria o plano dessa mulher?", perguntou de novo. Dos oito participantes, apenas dois acenderam a luz. A mulher ficou perplexa, com os olhos cheios de lágrimas. Aquelas pessoas demoliam um sonho por conta das roupas que usava. Mas a perplexidade não gerou a ira. Gerou estupor e aceitação. Ela, desanimada, decidiu mudar o visual. Eu bem sei que tudo isso é forjado e que era óbvio que a mulher aceitaria, mesmo assim esbravejei, xinguei, amaldiçoei todos os cinco donos da redes mundiais. Mas fiquei ali para ver  o que fariam àquela adorável mulher.

O final do programa a mostra transformada. Roupas chiques, dadas pelo programa e que ela certamente não conseguirá manter. Um cabelo alisado e de comprimento aumentado que tirou dela toda a personalidade que tinha anteriormente. Ficou parecendo uma boneca, com aqueles cabelos feitos de nylon. O rosto pintado apagou as marcas que a faziam forte. Era um pastiche da Naomi Campbell. Os familiares olhavam para ela inebriados: "Agora sim, é uma nova mulher".  De fato, era. Ela mesma se olhava no espelho e não se encontrava mais. Mas, já havia sido ensinada que ou se rendia aos modelos impostos pelo mundo do "bem vestir" ou estaria fadada ao fracasso.

De revesgueio olhei para meu guarda-roupa que, por ser velho, não fecha mais a porta, e espiei as roupinhas que tenho. Bateu em mim um terror. De acreditar que aquilo tudo dito ali pudesse aparecer como  verdade a alguém. Sou o que visto? Não posso expressar meu ser de maneira doida, extravagante ou simples demais? Tenho de seguir os apelos da moda? A mulher na tela parecia a noiva do Chuck. E chegara tão bonita.  Quanta deformação essa caixinha mágica pode provocar. Odiei a mulher, odiei a modelo, odiei Murdock. Mandei todos às favas e fui ouvir Jorge Drexler. "Amar la trama más que el desenlace".. ai, ai..


"Não tenho nada com isso"


Lixão onde queimaram os estudantes  - Foto: El País

O México se levanta na busca dos 43 estudantes que foram sequestrados e desaparecidos por forças do narcotráfico aliadas às forças do governo. Um crime brutal. Relatos dão conta que alguns podem ter sido queimados vivos. Outros foram metralhados ainda dentro do ônibus, onde estavam, vindo de uma cidade vizinha onde tinham ido buscar recursos para viajar para a cidade do México. Os estudantes da combativa escola Escola Rural Normal de Ayotzinapa queriam participar das celebrações de um terrível massacre de estudantes, ocorrido no México em 1968: o massacre de Tlatelolco. Por absurda ironia, eles mesmos seriam massacrados violentamente.

Naquele dia 26 de setembro eles partiram da escola rumo a cidade Iguala onde realizaram campanha de arrecadação de recursos, passando pelo comércio e até fechando algumas ruas para um pedágio. A movimentação de estudantes colocou em alerta os grupos armados e a municipalidade pois, na cidade, seguidamente os estudantes estavam questionando os atos criminosos, comuns por ali, praticados inclusive pelos políticos dirigentes. Era fato corrente que a esposa do prefeito, por exemplo, dirigia as finanças de um grupo ligado ao narcotráfico. A presença dos normalistas na cidade, de certa forma, também denunciava o fato de que o território estava tomado pelos grupos armados dos narcotraficantes, a tal ponto de que em vários povos, as comunidades tenham de se armar para se defender dos ataques e das brigas entre os bandos.

Por alguma razão o grande grupo de estudantes foi visto como um perigo, seja a esposa do prefeito, seja aos grupos do narco. O fato é que quando voltavam para casa, já tendo feito suas manifestações na cidade, eles foram atacados, sem que houvesse dúvidas de que aqueles homens ali estavam para matar. Primeiro os ônibus foram parados e logo em seguida já começou a metralha. Uma parte conseguiu fugir, outra foi morta no local. Os que ficaram foram levados em carros oficiais, da polícia, ainda que tenham sido adulteradas as placas. Testemunhas contam que eles chegaram com vida na intendência, mas logo foram recolhidos por outros agentes que os entregaram ao bando do narcotráfico. Já estava decidido que eles iriam morrer.

Relatos dos jornais locais, com depoimentos dos membros do cartel, já presos, contam que os estudantes foram levados até um lixão fora da cidade, alguns morreram asfixiados durante o trajeto.   Os que chegaram vivos eram interrogados sobre se faziam parte de um grupo rival. Ao que parece esse foi o golpe de mestre. Os policiais entregaram os jovens como se eles fossem integrantes de outro bando. Assim, não sujavam as mãos com o sangue deles. Mesmo que todos tenham dito serem estudantes da escola Normal Rural, não houve crédito. Foram executados com um tiro na cabeça. Depois, os corpos foram empilhados e queimados. A fogueira humana ardeu por horas, vigiada pelos homens do narco. Na manhã seguinte, eles recolheram o que sobrara em alguns sacos plásticos e jogaram no rio San Juan.

Passados mais de um mês da desaparição dos estudantes, o México se levanta em rebelião. Por todos os lugares o povo sai às ruas, chocado com tamanha barbárie. "Vivos os levaram, vivos os queremos", dizem os familiares e todas as gentes do país, hoje irmanadas na busca por Justiça. Algumas pessoas já foram presas, inclusive o prefeito de Iguala e sua esposa. Mas, o povo mexicano sabe que a brutalidade do que aconteceu em Guerrero não é uma coisa isolada. O país está tomado pelos grupos criminosos, com a participação explícita de grandes figuras nacionais. O narcotráfico prospera porque tem apoio oficial. O próprio presidente Peña Nieto está sendo questionado. Prender alguns homens que praticaram o doloroso crime não será suficiente. Porque o que se coloca em questão é a criminalização dos movimentos sociais, a ligação simbiótica das forças policias com o que há de pior nos cartéis do crime.  

A morte dos estudantes da escola rural que forma professores para o ensino fundamental abriu um caminho de manifestações gigantescas, de retomada dos grandes temas nacionais. Pelas ruas, as pessoas exigem punição aos responsáveis pelo crime e o fim estado paralelo, criminoso, que viceja sob as bênçãos dos governantes.  Também questiona o estado em si, igualmente criminoso, capacho das políticas impostas pelos Estados Unidos, responsável pelo crescimento do narcotráfico e incapaz de garantir a vida digna de seu povo. Nos últimos dias, até a porta do palácio presidencial foi queimada, num claro aviso de que o povo que realizou uma das revoluções mais bonitas dessa Abya Yala está desperto e unidos.

A fumaça que se ergueu sob a cidade de Iguala naquela triste noite de 26 de setembro se espalhou, adentrou janelas e mentes. A morte de todos aqueles jovens não será em vão. pelos caminho da nação mexicana haverão de se levantar as gentes e alguma coisa muito bonita haverá de brotar. Foi assim em Atenco, Oaxaca, San Critóbal e tantos outros lugares do grande México, onde a luta do povo unido tem mudado a realidade.

Desde aqui, do Brasil, onde também vivemos o massacre cotidiano dos jovens pobres e negros, nas favelas, nas periferias, nós nos solidarizamos com as famílias e com todos os mexicanos em luta. Aterrados, também assistimos, na última semana, um chamado feito por policias, via facebook, para uma chacina em Belém do Pará, no norte do país. Por conta da morte de um policial em serviço, foi dado o "salve geral", senha para a matança. E quando a manhã chegou, mais de 30, talvez 50 pessoas - pelas contas da comunidade  - estavam mortas, num julgamento pessoal, sem provas, sem motivos, sem nada. Não eram estudantes, mas eram também jovens, perdidos de esperança.

Muitos, ao verem esses fatos pela TV, dizem: "Com certeza eram marginais, que me importa, não os conheço, não tenho nada com isso." Mas, o fato é que deveriam se importar. Quando um estado perde o controle de sua força policial e ela começa a agir como os ditos "bandidos" que combate, o tecido social se rompe e abre espaço para a barbárie como a do estado de Guerrero no México, ou a de Belém. E quando a barbárie se instala ela fatalmente atinge a todos nós.

Assim, no terror cotidiano, seguimos, na dura luta pela vida digna.


Meninos de Ayotzinapa, presente! Meninos de Belém, presente!