terça-feira, 26 de agosto de 2014

A sorte da anã Catarina





Uma crônica maravilhosa do jornalista Gilberto Motta, lembrando uma dessas personagens inesquecíveis do nosso Mercado Público: Catarina. 





"Olha aí, bonitão! A cobra tá te perseguindo! O bilhete caiu no chão...É a sorte grande, simpatia!”.

1
Catarina chegava sempre com o bordão da esperança:
_____ Olha aí, capitão! A cobra tá atrás de ti, quiridu! Ói, ói, oi, o bilhete caiu no teu pé...É a sorte grande, amádu!!!

Mulher de corpo mínimo, lábios carnudos, cabelos loiros de tintura, seios e pés enormes, desproporcionais. Os pés de Catarina dariam uma tese acadêmica. As sandálias, então, seriam um capítulo à parte. Vivia ali pelos lados do mercado público, no centro da ilha. Era uma anã ao contrário. Jamais conheci criatura tão enorme em sentimentos; tudo aquilo que gostaríamos de ser no quesito liberdade. Até que um dia a sorte lhe veio de viés.

2
O negro Adilson saíra de Laguna com um firme desejo: ganhar a cidade grande e vencer na vida. Desembarcou no velho terminal ao lado do mercado público sonhando com as manchetes dos jornais e da televisão. Seria o melhor engraxate que a ilha jamais conhecera. Logo percebeu que o caminho para a glória passaria pelo mercado público da cidade. Semanas após, Adilson já era conhecido pelo talento em dar brilho nos sapatos de figurões no Box 32, “o balcão mais democrático de Floripa”. O tempo teceria as suas tramas parecendo não se importar com o negro, nem com a anã. Dois lados de uma mesma moeda à espera de um encontro com o imponderável. 

3
Tirando os pés enormes e desproporcionais, Catarina era uma anã toda certinha. Coxas grossinhas, seios empinados, lábios carnudos e olhos profundamente azuis. Entre uma venda e outra, as histórias entorno da anã iam sendo construídas. Aquela do ex-garçom do Linda Cap, “o mais tradicional restaurante da Ilha da Magia”... que a pedira em casamento e tudo, de papel passado, mas Catarina dera de ombros. A outra -do velho turco, anotador do jogo do bicho-, que lhe prometera fortunas e uma casa na Lagoa da Conceição. E tem o caso do emérito desembargador do Tribunal de Contas que, entre uma doses de Chivas no Box 32, escrevia poesias eróticas picantes para a desejada anã. De fato, Catarina provocava estranhamentos e insólitas paixões.

4
Adilson era um belo negro. Menino ainda, por volta dos dezesseis; e não conhecia ainda os desmandos que a vida impõe àqueles que vivem pelas ruas da região do velho mercado. E foi mesmo assim; poucas semanas se passaram do brilho ilusório dos sapatos de luxo dos bacanas da cidade até encarar e ter com a violência do mundo marginal. Subiu o morro da Prainha e se vendeu aos dragões. Fez amigos de baladas e lambanças e se sujeitou aos desmandos da vida por um fio. Fumou, cheirou e caiu finalmente no crack. Meses depois, o negro se arrastava alucinado pelos vãos do mercado público. 

5
Naquela noite, Catarina sonhou que acertara na loteca. Comprara um carrão importado e cedera, enfim, ao pedido de casamento do desembargador. Acordou feliz da vida, como de hábito, às cinco da matina. Acendeu as velhas no pequeno altar dedicado ao Nosso Senhor dos Passos; rezou e pediu que a sorte não lhe abandonasse. Produziu a detalhada maquiagem, batom vermelho carmim e a pinta preta na face feita a lápis barato comprado na banca do Pedrinho, “o melhor e mais honesto camelô da city”. Depois, espirrou o inseparável laquê nos longos cabelos, já descoloridos pela tintura duvidosa, e foi feliz para o trabalho. Adilson fumou crack a noite toda. Acordou com tiros no maciço da Cruz, na coroa do morro. Pegou a caixa de engraxar e vazou o velho mercado. Antes do meio dia, os dois se encontraram pela primeira vez.

6
______ Olha aí, bonitão! A cobra tá te perseguindo! O bilhete caiu no chão...É a sorte grande, simpatia! – disse a anã para o negro.
______ Quanto é a tira, coisa linda? – respondeu Adilson hipnotizado.
______ Pra você, é só cinco pratas; e olha que é extração especial, de Páscoa...vale quinhentos mil se der na cabeça! – informou Catarina.
Adilson juntou os trocados da manhã e comprou o bilhete sem tirar o olhar dos olhos da anã. Era o da cobra. A paixão instantânea selou a vida e armou o bote.

7
Era sábado e o mercado público estava em chamas. O Boi de Mamão do Sambaqui se apresentava no vão central. A prefeitura armara uma grande festa para comemorar a semana de Páscoa. Até o vento sul abrira um precedente e não soprara na ilha naquele fim de semana. A cidade estava em paz, contemplativa. Os corações de Adilson e Catarina, batendo em descompasso. Ao cair da tarde, o primeiro beijo. No início da noite, as carícias mais íntimas. Nas primeiras horas da madrugada de domingo, o sexo consumado em baixo da terceira ponte que une o continente à ilha. Depois, a sorte rolou seus dados na loteria do destino.

8
Catarina nascera com o tamanho de um bebê qualquer. Com o passar do tempo, a condição de seu futuro de anã foi se delineando. Atingira a idade adulta tendo exatos um metro e vinte e cinco centímetros, lábios carnudos e pés desproporcionais. O corpo miúdo de Catarina foi encontrado no início da tarde em um bebedouro abandonado sob a terceira ponte. As pedras foram insuficientes para ocultá-lo e os pés da anã serviram de faróis para a terrível localização. O negro engraxate se escondeu por uma semana nos mocós da Prainha. Preso, foi levado para a cadeia pública onde morreu assassinado por espancamento. “Justiça feita pelos amigos marginais”, diria o delegado à reportagem do jornal da TV. 

Dizem que, ainda hoje, nas tardes de sábado, quando o vento sul sopra na ilha, a anã Catarina pode ser vista negociando seus bilhetes pelas ruas estreitas do centro da cidade.

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