sábado, 23 de agosto de 2014

Amarildo, presente!










fotos: rubens lopes









A caminhada dos Guarani em protesto contra a campanha sistemática do grupo RBS de desinformação e fortalecimento do preconceito, além de toda  a força expressada na união de vários movimentos de luta da cidade, teve seu momento de singela emoção. Misturadas às gentes, estavam algumas famílias da Ocupação Amarildo. Essa ocupação virou a cidade de pernas para o ar, em dezembro de 2013, quando cerca de 60 famílias entraram em um terreno ocioso no caminho da praia de Canasvieiras, colocando luz sobre todo um processo de grilagem de terra, envolvendo impolutos empresários locais.

A ocupação Amarildo também desvelou uma face escondida da ilha da magia, que muitos preferem fazer de conta que não existe: a existência de milhares de famílias que não conseguem pagar os altos aluguéis e garantir a vida de seus filhos. Tanto que em poucos dias de existência a ocupação passou de 60 para 470 famílias acampadas, arriscando os parcos recursos na luta por terra, trabalho e moradia.

Durante meses os “amarildos” foram notícia na cidade, ocupando os espaços públicos, denunciando a grilagem, questionando o sistema, exigindo respostas da justiça e do estado. Meteram o dedo bem fundo na ferida e pagaram caro por isso. Em abril de 2014 as famílias acabaram despejadas do terreno em Canasvieiras. A elite local não queria saber de pobre na praia. E, no cair de uma noite cálida, lá estavam os caminhões, para retirar as pessoas, as tralhas e os bichos. Não havia para onde ir.

O braço estendido aos amarildos foi o braço Guarani. Da terra ocupada eles foram levados para a terra indígena que os abrigou até que conseguissem se fortalecer e rearticular o movimento. Hoje, as famílias da ocupação estão numa terra garantida pelo Incra, na grande Florianópolis.

E foi em nome desse braço estendido, de um povo tão sofrido e oprimido quanto eles, que vieram de suas terras para a caminhada. Aquele era um compromisso de solidariedade concreta. Um desses momentos únicos de expressão de gratidão.


A bandeira vermelha dos amarildos tremulou bonita, mostrando que ainda há ternura na luta e que o povo, unido, avança seguro. Foi uma cena bonita de se ver...

Negros de Florianópolis em luta contra o genocídio














Fotos: rubens lopes






E, então, a marcha Guarani, proposta pelas comunidades indígenas para protestar contra a RBS e sua política de desinformação, também se fez negra. No dia 22 de agosto, quando em todo o Brasil o povo negro se levantava na Segunda Marcha Nacional contra o genocídio da população negra, em Florianópolis, militantes se uniram a caminhada indígena em solidariedade e em luta.  Os negros e negras se manifestaram potencializando a mensagem daqueles que, mesmo sendo maioria, seguem excluídos da vida digna nesse país. E, não bastando isso, ainda são submetidos a um sistemático processo de genocídio, com a morte cotidiana de sua juventude.  Não passa um dia sem que um negro tombe nessa batalha sem quartel de criminalização, preconceito, racismo e opressão.

Santa Catarina é conhecido como o estado que tem o menor índice de negros no Brasil (11% da população) e, por conta disso, é comum se ouvir que por aqui não há nenhum problema de racismo ou de violência contra o povo negro. Isso não é verdade. Assim, a comunidade precisa fazer o combate em duas frentes. Primeiro, mostrar que existem negros por aqui e, depois, mostrar que sofrem o racismo e a violência, exatamente como em todos os estados do Brasil.

Apesar de a escravidão ter chegado mais tarde nas terras do sul ela veio com todas as mazelas e, ao terminar, também deixou uma população negra na margem da vida. Livres, mas nem tanto, uma vez que como nos demais estados do país, não houve políticas de inclusão. Assim, em lugares como Florianópolis, o destino do povo negro foi a periferia da cidade, mas com a expansão do comércio e o surgimento de famílias abastadas logo foram empurrados para os morros. Sabe-se que desde a metade do 1700, bem antes da abolição, já havia famílias de negros, a maioria formada por fugitivos da escravidão e recém libertos, vivendo no maciço do morro da cruz. Logo, por aqui também vicejaram os quilombos, espaço de liberdade e resistência.

Com o crescimento da cidade, mais e mais famílias foram subindo as encostas e formando comunidades. Hoje, muitos destes espaços são considerados “perigosos” e recebem frequentes visitas da polícia, no mesmo “estilo” que as comunidades de periferia das grandes cidades do país. Tanto que desde alguns anos formou-se um movimento de mães de jovens assassinados clamando por justiça, denunciando a política racista que sistematicamente liga a figura do negro à marginalidade. A cor é motivo de suspeição.

E, não bastasse a violência do estado, o racismo também se expressa nos lugares mais inauditos. Com a política de cotas que agora existe na Universidade Federal, até nesse que deveria ser um centro de respeito aos direitos, de criação do saber e de vanguarda, o racismo aparece com força. Há poucos meses um estudante branco postou a foto de um casal negro, na qual o homem entregava um cacho de bananas à mulher. Isso gerou uma reação imediata dos estudantes negros da UFSC, que agora já são em um bom número, tornando-se visíveis. Esses estudantes realizaram protestos e abriram uma frente de luta importantíssima dentro do campus, mostrando que agora eles estão ali e querem muito mais do que integrar-se a uma cultura universitária eivada de preconceitos e discriminação. Hoje, eles circulam afirmando sua identidade, com elementos da sua cultura e, principalmente, atentos ao racismo – sempre recorrente - prontos para o combate.


E foi para dar visibilidade à luta e denunciar o genocídio que os militantes negros marcharam junto com o povo Guarani, com os quilombolas, com os sem-terra, os sindicalistas e militantes sociais, mostrando que o povo negro existe, é forte, é unido e tem direito à cidade. Na luta contra o racismo e a discriminação e contra a matança sistemática da juventude negra, aqui e em todo o Brasil.

Guarani protesta contra RBS e reafirma sua cultura



















Os índios Guarani decidiram sair em passeata pela cidade de Florianópolis. A marcha foi um protesto e uma afirmação. Protesto, porque era preciso responder a série de reportagens do jornal Diário Catarinense, que, de maneira deliberada, desinforma sobre a questão indígena a cada reportagem que produz. Não é novidade para ninguém que o grupo RBS defende os interesses dos especuladores de terra. Por isso, essa coisa cotidiana de disseminar meias verdades. “As famílias que ocupam a terra do Morro dos Cavalos são do Paraguai”, dizem. Uma mentira, mas mesmo que fosse verdade, isso não as faria menos Guarani e tampouco faria com que o território fosse menos Guarani. Antes da chegada dos invasores europeus toda essa região que pega parte do Rio Grande, Santa Catarina, Paraguai, parte do Uruguai, Bolívia e Peru era território Guarani. Assim que não há mais nada a discutir sobre isso. O espaço ocupado pelas famílias Guarani no Morro dos Cavalos é Guarani.

Outro elemento colocado pelos disseminadores do ódio e do preconceito é que os índios não precisam de tanta terra para viver. Outra mentira e outra desinformação. A cultura indígena se diferencia da cultura do branco. Primeiro que eles não organizam suas vidas como os brancos da cidade, que dividem a terra em lotes nos quais tem sua moradia, desvinculadas da vida mesma. Para o Guarani, o território é espaço coletivo, no qual as famílias compartilham a existência. Ali, há o espaço das moradias, da agricultura de subsistência, do sagrado, da preservação. A terra é muito mais do que um lugar onde morar, é espaço de vida, de cultura e de espiritualidade. No território eles moram, vivenciam a cultura, fazem rotação de plantio, encontram seus deuses. Será tão difícil entender isso? Desde quando essas pequenas fatias de terra podem ser consideradas “muito”, se os indígenas são os primeiros usuários desses lugares? E por que não se questiona com igual virulência o fato de uma única pessoa ser dona de milhares de hectares de terra improdutiva, como é o caso dos latifúndios?

O fato é que os povos indígenas são os verdadeiros donos das terras, usurpadas pelo invasor. E, agora, o que pedem é ainda muito pouco diante do que deveria ser legitimado como território indígena. Ainda assim, a cobiça dos latifundiários e dos especuladores não tem fim. Não basta confinar os indígenas em espaços minúsculos, há que lhes negar o território mínimo.  E mais, há que colocar sobre eles toda a sorte de preconceito e dúvida.
Mas, os Guarani não se intimidam com as práticas violentas dos meios de comunicação a serviço dos especuladores de terras. Lutam por seu território e defendem sua forma de vida. Por isso decidiram realizar a caminhada pelas ruas da capital catarinense para entregar à população um panfleto onde contam a sua versão sobre os fatos. Um espaço de diálogo no qual buscam falar de sua história e de sua foram de organizar a vida, que é coletiva e caminhante, bem diferente da do não-índio.

Nesse protesto, os Guarani receberam a solidariedade de outros grupos que, igualmente, sofrem os ataques da mídia e da sociedade excludente. Negros, que vivem cotidianamente um genocídio. Quilombolas, que lutam pela  regularização de suas terras. Povo sem terra, que busca um espaço para viver com dignidade. Todos eles marcharam juntos, apresentando suas demandas, irmanados, porque, afinal, como definiu uma das lideranças negras, Alexander Zock Faria: “Nossa luta é a mesma, é uma luta pela vida, unicamente pela vida”.

Os Guarani que vivem no Morro dos Cavalos conformam uma comunidade com 32 famílias. Vivem há anos confinados em um pequeno espaço de terra, no qual sequer conseguem plantar. Lutam para garantir o território (menos de 0,6% do espaço total do estado) e a desintrusão, que é a retirada das famílias que hoje ocupam a área originalmente indígena. Muitas já aceitaram o acordo com a Funai, mas ainda há resistência. Algumas famílias estão ali há anos, tendo comprado as terras de boa fé. É um conflito, de difícil solução, ainda mais que o tempo todo é transpassado por pessoas que procuram aprofundá-lo. O território Guarani também fica bem no meio de uma disputa com o Estado , que quer a duplicação da BR 101, e é uma constante na mídia, imputar aos indígenas a culpa pela demora das obras. Ora, se a BR ainda não foi duplicada, a culpa não é dos Guarani, mas sim dos governos estadual e federal que não cumprem a lei. Questões como a consulta aos indígenas – que está garantida na Constituição – e problemas de ordem da legislação ambiental é que tem travado o andamento das obras. Mas, fica mais fácil jogar a “culpa” para os índios, como se fossem eles os responsáveis pelo “entrave” e pelas mortes que seguem acontecendo no trecho não duplicado. Cria-se um consenso contra os indígenas, quando, na verdade, as causas do atraso são outras. E assim, o preconceito contra os indígenas vai se aprofundando, com a sempre providencial atuação da mídia, que propaga mentiras.

A caminhada dessa sexta-feira (dia 22 de agosto) foi uma tentativa de mostrar à comunidade catarinense que o povo Guarani tem todo o direito de ocupar o seu território, que é ínfimo diante do que lhes seria direito. E, também, na medida em que os indígenas saem à ruas, mostrando todos os elementos de sua cultura, buscam também levar conhecimento ao juruá (não-índio), informando sobre sua forma de viver. Eles acreditam que se a população tiver a informação correta não vai discriminar.

O protesto contra a RBS teve a parceria dos representantes do movimento negro, que também apresentaram à sociedade a sua luta contra o genocídio do povo negro, dos quilombolas, que lutam pela regularização de suas terras, e das famílias que hoje lutam por moradia na Ocupação Amarildo. Juntos, eles desfilaram suas bandeiras e suas demandas. Uma caminhada pelo direito de viver em paz.    

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Sem dúvida, velha!



























Lá vinha eu no ônibus. Como sempre, em pé, porque há que fazer cálculos. Se a pessoa sai do centro determinada hora pode perder o outro ônibus no segundo terminal, e aí fica mais de hora esperando. O tempo duplica. É uma loucura matemática. Então, não dá para esperar para ir sentado. Tem que pegar o carro que te leva ao outro terminal no tempo certo. Difícil explicar para quem não sofre o transporte desintegrado de Floripa. Mas, enfim. Quero falar da velhice.

Há sempre aquele ditado bonitinho que diz: a velhice é um estado de espírito. Só é velho quem quer... Bobagem, não é verdade. Pelo menos, não para a os trabalhadores. Aí a gente entende o papo mosca do politicamente correto. A diferença entre idoso e velho é a diferença de classe. Explico.  Pois como eu dizia, vinha em pé no ônibus me equilibrando com a bolsa pesada, o casaco e os livros. Tenho de segurar no banco porque meu metro e meio não me permite pendurar lá em cima. Então, uma mão já está comprometida com o segurar o “corpicho”. E com a outra eu tentava segurar o livro aberto, para ler, afinal a travessia do centro até o Rio Tavares pode levar até uma hora no período de pico.  O bagulho estava doido.

Quando cheguei ao Rio Tavares o corpo todo doía. A mão, formigando por apertar demasiado o banco, já que os motoristas dirigem como loucos e nas curvas há que fazer malabares. A outra, doendo pelo peso dos livros, e as costas em frangalhos por conta da bolsa lotada de papéis, escova de dente, pasta, batom, bonequinho do Chaves, camiseta, gorro, câmera e gravador. Esse kit básico do jornalista que sai de casa pela manhã e volta à noite. O nervo ciático repuxando tudo, fazendo mancar. Era a imagem do tinhoso.
Então vem a constatação básica. Estou velha. Velha, não idosa. Velha, incapaz de aguentar mais o peso da bolsa, dos livros, da situação vexatória do transporte público, de ser quem eu sou. Então vislumbrei os “idosos” das propagandas de banco ou de margarina. São ricos. Andam com roupas diáfanas, cabelinhos arranjados, maquiagem e estão sempre em alguma paisagem encantadora. Alguns devem ter criados para suas vontades mais tolas. Andam de carro, tranquilos. Sorriem e parecem saudáveis.

Ser velho é coisa de pobre mesmo. De quem precisa se virar na correria do dia, trabalhar, limpar, levantar peso, carregar tralhas e, ao fim do dia, ainda balançar como um pedaço de carne murcha nos ônibus lotados e sem janela, respirando um ar viciado. Velha. Na dolorosa constatação de quem não tem mais forças para enfrentar o tirão. “Há que diminuir o peso”, diz o ortopedista, vendo o corpo retorcido de dor. Mas como? Comprando um escravo para levar a bolsa com tudo que se necessita ao longo do dia? O bagulho é mesmo doido, meu irmão...


E assim, na constatação cotidiana da nossa condição, a gente vai percebendo o quanto essa política do “correto” é sacana e mentirosa. Esteriliza a verdade, amacia, engana. Como dizer idoso ao que vai se desmilinguindo pelos caminhos? Para nós, desse lado de cá do rio, é velho. Velho mesmo. Com todas as durezas, as dificuldades, as feiuras, as dores, as humilhações. Aquele momento fugaz em que se percebe que algo se perdeu e não volta mais.

O massacre dos 70/30


ou sobre como os trabalhadores deixaram o medo e começaram a andar

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que hoje está em vigor foi aprovada em 1996, diante de um movimento social perplexo pela ação do então senador Darcy Ribeiro, que atropelando um debate democrático de anos, apresentou um substitutivo e conseguiu aprova-lo, apesar dos fortes protestos que aconteceram em todo o território nacional. Na nova lei, um dos pontos que configurou tremenda derrota para os trabalhadores foi justamente o que definiu a superioridade dos professores que diz respeito à administração das universidades. Apenas eles poderiam se candidatar à reitoria e a escolha deveria ser feita de forma indireta, pelo Conselho Universitário, respeitando uma porcentagem de 70/30. Ou seja, 70% do peso dos votos ficaria na mão dos professores, enquanto os 30% restantes seriam divididos entre técnicos e estudantes. Com essa proposta, Darcy reforçava a ideia de que os técnico-administrativos não tinham qualquer importância na vida universitária. 

O processo de construção da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação começou logo depois da aprovação da nova Constituição, com a apresentação de um projeto que era fruto de grandes debates públicos. Durante muitos anos, com mais força em 1989, as entidades ligadas à educação haviam discutido a proposta de LDB nos seus fóruns e tinham logrado incluir muitos pontos considerados importantes e progressistas. Justamente por isso, e por não terem uma correlação de forças favorável dentro do Congresso Nacional, que essas entidades – unidas no Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública - optaram por aceitar um consenso com os parlamentares, evitando assim confrontos que poderiam levar a perda dos avanços.

A Lei tramitou no Congresso Nacional desde 1990, passando pelas comissões e recebendo emendas. Apesar das muitas contribuições, o caráter progressista da lei foi mantido, graças ao esforço de parlamentares como Florestan Fernandes e Jorge Hage, seu primeiro relator. Quando afinal foi submetido à pauta do Congresso para votação, em 1991, o projeto tinha sido acrescentado de 1.263 emendas. A ofensiva conservadora protelou por mais tempo a votação, encaminhando o projeto de volta para as comissões. Aí acontecem novas eleições e mudam os deputados. Angela Amin passa a ser a relatora da Comissão de Educação no lugar de Jorge Hage. Naqueles dias chega a surgir um projeto substitutivo proposto por um deputado que era dono de uma rede privada de escolas. Um verdadeiro retrocesso. 

A reação do Fórum Nacional em Defesa Pública conseguiu reunir mais de 10 mil pessoas em Brasília e os protestos se multiplicaram por todo o país. A ação conseguiu paralisar o projeto por dois anos. Durante esse tempo novas emendas foram apresentadas e novos relatórios foram sendo produzidos, sempre pendendo para o lado conservador. Em 1992 o processo de negociação recomeçou com o debate sobre três substitutivos diferentes. O ponto central do debate era a batalha pelo fortalecimento do sistema público de educação, enquanto os conservadores buscavam privatizar. Davam-se batalhas gigantescas no interior do Congresso, com esse tema perpassando todo o processo. 

Quando todas as forças atuavam no debate das propostas apresentadas, surge, de maneira completamente inusitada, um projeto substitutivo, de autoria do então senador Darcy Ribeiro. O atropelo do novo substitutivo complicou a luta que vinha sendo feita pelo Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública, pois, como vinha do senado, teria prioridade na votação, deixando o antigo projeto – construído coletivamente à duras penas  -  em desvantagem. Começou então uma batalha regimental para ver qual o projeto seria colocado em votação primeiro.

A ação de Darcy Ribeiro dividiu as forças progressistas e acabou polarizando o debate em torno de dois projetos. Um que era o da Câmara – com todas as suas idas e vindas (e alguma excrecências), e outro que era o dele. A manobra realizada por Darcy Ribeiro colocou em polvorosa o movimento pela educação outra vez. Houve protestos e lutas. Mas, ainda assim, o projeto de Darcy seguiu sendo o que balizaria a discussão, e o que é pior, incorporando novas emendas feitas pelo governo, via MEC. Era a descaracterização total do trabalho coletivo e democrático que vinha sendo feito desde 1989. E assim, a LDB é aprovada em dezembro de 1996, considerando o projeto individual de Darcy Ribeiro. Foi uma grande derrota para o movimento social.

As eleições e o peso dos trabalhadores

Como havia o entendimento de que a lei aprovada era fruto de um golpe, no campo da educação a luta continuou, visando garantir mudanças que representassem novas correlações de forças que foram se formando no legislativo. De qualquer forma, os tempos neoliberais de FHC foram difíceis para a luta popular como um todo, pois havia muitas frentes para serem atacadas, entre elas a da privatização, o que levou para segundo plano algumas questões mais pontuais. Ainda assim, no âmbito dos trabalhadores das universidades esse ponto específico da LDB, que dá aos professores todos os poderes, sempre foi discutido e combatido. Tanto que em muitas instituições federais aconteceram protestos significativos contra essa ideia. Na UFSC, por exemplo, o movimento chegou a construir uma candidatura estudantil à reitoria, buscando dar visibilidade ao completo absurdo que era deixar de fora dos fóruns de decisão àqueles que são a razão de ser da universidade. No campo dos técnicos-administrativos essa tática nunca foi usada, mas o debate pelo direito de estar em igualdade de condições nos fóruns sempre se deu. 

Com o processo de luta política, as universidades conseguiram criar mecanismos de consulta à comunidade – feita através de eleições diretas – organizada pelas entidades das três categorias, docentes, técnicos e estudantes. Havia o acordo de que o nome do candidato eleito de forma paritária, ou seja, com o peso do voto não configurado nos 70/30, mas dividido em igual medida entre as três categorias, seria o enviado ao MEC pelo Conselho Universitário, esse sim configurado dentro dos parâmetros do 70/30.

Essa maneira engenhosa de escapar do reacionarismo da lei acabou sendo acolhida por todas as universidades, com eventuais casos de não cumprimento do acordo. Mas, apesar desse acerto, a batalha pela mudança, na lei, dessa regra excludente e elitista seguiu seu curso. Para os trabalhadores e estudantes, não bastava garantir o direito paritário ao voto numa eleição para reitor. Havia que garantir essa paridade também nos fóruns de decisão. Espaços como o Conselho Universitário, Colegiados de Curso e Departamentos cumprem a lógica do 70/30. Ou seja, nas instâncias cotidianas de decisão da vida universitária, técnicos e estudantes seguem como seres de segunda categoria e sem qualquer possibilidade de garantir suas demandas. Mesmo em eventuais alianças entre os dois, não conseguem superar a avassaladora maioria docente.

Por conta disso, ao longo dos anos seguiram sendo apresentadas emendas à LDB visando mudar esse estado de coisa. Mas, dentro do Congresso Nacional esse tipo de demanda não caminha. Projetos mofam nas gavetas e os trabalhadores precisam garantir, na luta cotidiana, esses espaços de poder. O que não é fácil.

Um exemplo da UFSC

Para entender como funciona o domínio dos professores na vida da universidade basta assistir uma reunião do Conselho Universitário. Nesse fórum, que, em última instância, decide a vida universitária, a conformação é de 70/30. Os técnicos têm apenas seis vagas, assim como os estudantes.  Entidades externas à UFSC têm quatro vagas e o restante é composto por professores. Ou seja, nem nos mais dourados sonhos os trabalhadores técnico-administrativos e os estudantes podem garantir suas demandas. A diferença é esmagadora.

Nessa terça-feira, dia 19 de agosto, a comunidade pode presenciar esse poder em ação. Em greve desde o dia 5, por conta de uma quebra de acordo por parte da reitoria, com uma pauta interna referente à jornada de trabalho, os representantes dos trabalhadores técnico-administrativos em educação (TAEs) apresentaram um pedido à presidente do CUn, que é também reitora da UFSC, Roselane Neckel, para que fosse incluído na pauta o tema da greve, visto que aquela presidência não havia pautado o assunto, mesmo que a universidade já estivesse há três semanas com seu funcionamento alterado. A greve dos TAEs têm garantido as portas abertas da universidade nos horários do meio dia e à noite, dando aos estudantes possibilidade de melhor atendimento. Tudo isso faz parte da luta por redução de jornada com ampliação de atendimento.

O que seguiu no egrégio conselho é a prova cabal da impossibilidade da democracia em condições de tamanha desigualdade representativa. Primeiro que a presidente do conselho usa o microfone ao seu bel prazer, fazendo defesas enquanto apresenta os pontos. É constrangedor. Mas, ao que parece, a maioria não liga. Assim, Roselane defendeu que não havia necessidade de o Conselho discutir o movimento dos técnicos e só depois colocou em discussão. Imediatamente um estudante pediu a palavra para defender a discussão do tema no Conselho. Roselane volta a falar, defendo que não. Paulo Pinheiro, diretor do CFH, defende que se dê espaço ao sindicato para uma manifestação, mas só no final da reunião e sem discussão do ponto. O diretor do CCJ, Luis Carlos Cacellier, inicia uma discussão jurídica sobre se os trabalhadores entraram com recurso junto ao CUn ou à reitoria, uma algaravia sem sentido que tem um único intuito: negar a palavra aos técnicos e impedir o debate.

A presidente do conselho, Roselane, põe em votação se os trabalhadores podem ou não dar os informes da greve. Apenas as representações dos TAEs e dos estudantes votam que sim. Os demais, professores, se negam a discutir a greve. Todos votam contra. Ou seja, um tema como a greve dos trabalhadores é olimpicamente ignorado pelos professores. Nenhuma chance de debate. O massacre da serra elétrica não seria tão contundente. Além de negarem a palavra aos trabalhadores, os membros docentes do conselho, ainda fazem questão de desconhecer o processo de luta que está em andamento na universidade.

Crescimento do conservadorismo

O exemplo acima é só um caso. Outros tantos poderiam ser apontados. O que dá conta da completa falta de democracia nos fóruns da universidade. Regra geral, mesmo os autores mais progressistas no debate sobre a universidade – majoritariamente professores – não falam do trabalho dos técnicos ou reconhecem a sua importância dentro da instituição. A universidade é dos professores, aos técnicos cabe o trabalho braçal e a invisibilidade. Tanto que foi preciso uma batalha e tanto para garantir que técnicos pudessem coordenar extensão ou pesquisa, mesmo que desde sempre esses trabalhadores tenham coordenado – na prática – esses trabalhos. E, ainda que hoje eles possam coordenar extensão e pesquisa, ficam alijados de editais que garantem recursos para projetos. É uma incoerência e uma demonstração inequívoca da “desimportância” desses trabalhadores diante dos fóruns da instituição.  

Pois não bastasse toda a batalha cotidiana que é preciso travar para se fazer ver como trabalhadores que, junto com os docentes, também são criadores do saber, agora os técnico-administrativos da UFSC estão diante de um novo ataque conservador por parte de um grupo de professores que iniciou uma campanha pela aplicação dos 70/30 no processo eleitoral que decide a administração central. Não querem mais a consulta feita de forma paritária. Querem que a decisão se dê por escolha majoritária dos professores. Ou seja, retiram dos TAEs e dos estudantes, o mínimo que têm de participação democrática na vida universitária, já que a eleição para reitor é o único espaço no qual existe uma participação paritária.

Esse é então o pano de fundo de toda a luta que hoje se trava na UFSC, que não é diferente das demais Instituições Federais de Ensino Superior. Um reavivamento do conservadorismo, um encolhimento da democracia, um retrocesso histórico. Tudo sendo feito no âmbito de uma administração que se elegeu com um discurso progressista, de mudança e diálogo. Reforça-se a ideia de que só os professores podem ser sujeitos da vida universitária, acirra-se a luta inter-classe, apequena-se a política.

E essa é uma batalha que está em curso.