sexta-feira, 16 de maio de 2014

Araucárias










No caminho para o oeste do estado de Santa Catarina a paisagem é aflitiva. O que se vê é um exército de pinus, cultura invasora que toma conta de quase todo o trajeto até a Argentina. Estão por toda parte como protagonistas de um modelo de produção que está matando as culturas de subsistência. Afinal, para os pequenos produtores, é muito mais seguro aceitar o plantio de pinus, com cliente fixo, do que apostar na produção de comida, sujeita a toda a sorte de intempéries. Na região de Lages, que já foi um celeiro de madeira nobre - totalmente devastado -  a fumaça intermitente anuncia o reino das papeleiras. Pelos caminhos, rareiam as araucárias, árvores típicas da região serrana, que até pouco tempo compunham, indefectíveis, a paisagem. Como estão quase em extinção, uma lei obriga quem tem uma araucária no terreno, a cuidar e nunca cortar. Por conta disso, entendendo que a lei “atrapalha” a vida e o uso dos terrenos, os agricultores estão arrancando as mudas tão logo elas brotam, para evitar ficar com a terra presa.  E, assim, as mães dos pinhões estão cada vez mais difíceis de encontrar. 

Talvez por conta dessa triste realidade que virar a BR 282 à esquerda, no rumo de Urubici, se transforme num passeio de tirar o fôlego. Tão logo nos afastamos da estrada principal já começam a aparecer as araucárias. Grandes, pequenas, médias, arvores bebês. É uma profusão. Por toda a extensão vão pipocando, soberanas, provocando vagas de emoção. Ali, elas estão protegidas e, ao que parece, são amadas. Entre bichos e gentes, as grandes árvores se balançam, altaneiras, esperando que chegue a hora de engravidar e gerar milhares de pinhões, uma semente com sabor de serra, de vento frio. 

Andando mais um pouco, passamos a acolhedora cidade de Urubici e seguimos em direção ao Parque Nacional São Joaquim, um refúgio da natureza, criado para proteger o ecossistema da região da sanha gananciosa dos donos de terra. A ideia de criar o parque como uma unidade de conservação surgiu no ano de 1957, quando a exploração de madeira chegava às raias do absurdo, devastando toda a cultura nativa. A luta foi grande mas, em 1961, uma lei federal tornava real o parque, conservando assim 49.300 hectares de terra com toda a vegetação típica da região. 

Situado na borda oriental da Serra Geral, cuja formação data de mais de 120 milhões de anos, o Parque São Joaquim abrange parte dos municípios de Urubici, Bom Jardim da Serra, Orleans e Grão Pará. Naquela imensidão verde se abrigam mananciais de fundamental importância para a vida do estado, como a nascente do Rio Pelotas, localizada bem no alto do Morro da Igreja. Ali, além de a gente se estupefar com a beleza das formações rochosas pode-se ver a famosa Pedra Furada, uma lapidação primorosa revelada pela natureza. No início do outono, a vista é deslumbrante, as cores são vivas e o vento forte parece falar ao ouvido, contando de passadas eras.

O parque mistura vegetação da mata Atlântica com a da mata das Araucárias, além de apresentar campos de altitude. A fauna abriga espécies pouco vistas como o leão-baio (puma), o quati, a cutia,o urubu-rei e uma série de pequenas aves como o pedreiro e o garimpeirinho. Também por ali voejam as gralhas azuis, responsáveis pela disseminação da semente da araucária.

O caminho até o Morro da Igreja nos leva para um lugar bem distante, no passado, como quando a floresta de araucárias  cobria mais de 220 mil quilômetros entre o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ali, parece que tudo ainda está intocado. Apenas a base do Cindacta, bem no topo do morro,  quebra um pouco o clima , embora evoque outros mistérios como a vida extraterrena. Em dias de semana, com poucos turistas, é possível sentar de frente para o abismo e ficar a cismar. Uma experiência sem igual.

Na volta para Urubici, impossível deixar de ver o “véu de noiva”, uma cascata de tamanho médio, de profunda beleza. Em volta dela, dezenas de araucárias bebês iniciam sua jornada de séculos, afinal elas podem viver mais de 500 anos. É como uma bênção. Nessa hora, tudo o que se pode fazer é agradecer por um dia, alguém ter travado essa luta, garantindo espaço de liberdade e de vida para a “mãe dos pinhões”, chamada de curi pelos indígenas da região. Triste pensar que é justamente o homem, o responsável pela sua destruição. Ainda assim, saímos de Urubici com o coração aos saltos, sabendo que enquanto existir o parque São Joaquim a grande árvore serrana sobreviverá. 

Enquanto isso, na vastidão do estado, as pequenas mudas das centenárias árvores que conseguem vingar sem serem arrancadas, vão resistindo, afogadas pelo pinus. Estão por ali, solitárias, esperando pelo voo da gralha, que semeará, até quando ela mesma não mais existir...

O enterro das 40 horas e a viragem na UFSC
























A Universidade Federal de Santa Catarina viveu nesse dia 15 de maio o que poderia ser mais um pequeno evento dentro da greve dos trabalhadores. Mas não foi. A atividade que reuniu os técnico-administrativos em educação  no chamado "enterro das 40 horas" configurou-se numa viragem política que certamente terá consequências importantes no longo prazo. Fruto de um sistemático trabalho de estudo sobre a realidade da UFSC, a nova geração de trabalhadores superou o sindicato conservador e impôs o seu ritmo no processo da greve. Por conta disso, e apesar de todos os entraves colocados por boa parte dos dirigentes sindicais, os trabalhadores construíram uma proposta para a implantação das 30 horas e realizaram um ato de entrega à reitora, no qual se insurgiu como protagonista essa nova geração. Foi um momento histórico.

A batalha dos trabalhadores da UFSC pela construção de uma universidade diferente e pela garantia de um espaço digno onde trabalhar não é de hoje. Desde a criação da universidade nos anos 60, digladiam-se dois grupos bastante diferenciados. Um, ligado ao poder instituído, liderou a organização dos trabalhadores durante décadas, sustentando sucessivas direções conservadoras e atuando internamente com práticas assistencialistas. Outro, preocupado com a soberania dos trabalhadores e com uma universidade verdadeiramente ligada aos interesses populares, sempre fez oposição e batalhou por melhores condições de trabalho bem como por uma universidade igualmente soberana. Esses dois grupos travaram grandes batalhas e uma delas foi justamente a criação do sindicato, entidade necessária nos anos 80, quando o país saía da longa e violenta ditadura militar. 

Com o processo de democratização do país, uma nova geração de trabalhadores começou a impor outro ritmo às lutas internas e foi nesse rastro que nasceu o Movimento Alternativa Independente, aglutinando pessoas que queriam bem mais do que a assistência, que buscavam espaços de luta capazes de avançar na briga por direitos e democracia. Esse movimento, imortalizado como MAI, provocou mudanças radicais na UFSC, varrendo o atraso e o conservadorismo. A partir dele nasceu o sindicato e com essa força organizativa, os trabalhadores realizaram memoráveis greves e foram capazes de garantir novos direitos. Era a força de uma juventude que chegava cheia de desejos de mudança.

O tempo passou e o lado conservador voltou, conquistando o espaço sindical a partir da mesma velha aliança com a administração, típica dos primeiros anos da UFSC. Foi preciso uma nova leva de pessoas, recém ingressadas no serviço público, no início dos anos 90, para dar novo fôlego às lutas. Foi assim que, depois de um difícil processo de reorganização, em 1998 o sindicato foi outra vez recuperado por um grupo de trabalhadores que retomava os princípios do MAI, acrescentando novas propostas. Foi esse grupo que enfrentou o último mandato de FHC e o primeiro mandato de Lula. 

Com o desmantelamento e domesticação do mundo sindical pós eleição de Luis Inácio, também na UFSC as divisas entre grupos ficaram confusas. Aqueles que por décadas tinham sido apontados como esquerda, faziam a crítica à Lula. E os que sempre estiveram no campo da direita apoiavam o governo. Foi um tempo de muita confusão e muito bem aproveitado pelos grupos conservadores que, novamente, assumiram o controle do sindicato, amortecendo as lutas. E esse é o perfil atual. Um sindicato fraco, domesticado pelas forças governistas, incapaz de levantar a categoria nas lutas necessárias.

Foi esse mesmo sindicato que se mostrou bastante tímido quando, na greve de 2012, os trabalhadores, já oxigenados por outra nova geração que chegara a partir de 2004, entraram de cabeça na luta pelas 30 horas, iniciada anos antes pelo grupo de esquerda que então comandava o sindicato. Todas as iniciativas para avançar nas 30 horas eram problematizadas e desconstruídas. Foi preciso que a base passasse por cima da direção e garantisse a proposta de criação de um grupo, envolvendo TAEs e reitoria, para fazer um diagnóstico da UFSC e verificar a possibilidade das 30 horas, que permitiria à universidade ficar bem mais tempo aberta para toda a comunidade. 

Uma assembleia histórica aprovou o grupo de trabalho e a proposta foi levada à reitoria, que aceitou o desafio. Finda a greve, o grupo foi criado, chamado de Reorganiza UFSC, e durante um ano inteiro esquadrinhou a universidade em todos os seus setores. Ao final, o relatório, entregue em maio de 2013, apontava que a universidade tinha todas as condições de abrir suas portas durante todo o dia e à noite, ficando facultado, assim, os turnos de seis horas aos trabalhadores, conforme reza a lei.

O relatório foi entregue à reitora Roselane Neckel, apesar de ao longo do processo ela ter começado a se esquivar da proposta, alegando entraves na lei. Tanto que a entrega teve de ser forçada, com um visível desconforto por parte da administração, que não estava disposta a apoiar o resultado do trabalho. Tudo isso foi fortalecendo o grupo de novos trabalhadores que, aliados aos antigos lutadores da UFSC, foram tomando as rédeas da luta. O governo Lula deixou uma herança grande de direitos perdidos e à essa nova geração caberia uma nova e renhida peleia.

A batalha pelas 30 horas foi dando visibilidade ao grupo que, em função de todo o trabalho de organização, acabou tendo uma vitória estrondosa nas eleições para o Conselho Universitário, quebrando um ciclo de décadas, uma vez que, historicamente, por conta da ação das administrações, as cadeiras no CUn quase sempre foram ocupadas pelos representantes dos grupos conservadores. Em 2013, pela primeira vez, as seis vagas estavam na mão das forças progressistas e de esquerda, numa dobradinha entre a nova e velha geração, aliadas pelas mesmas propostas. 

Assim, não é de admirar que esse grupo tenha crescido e se fortalecido ao longo do tempo. A ação no Conselho Universitário, transparente, democrática e responsável, tem sido reconhecida pela maioria dos trabalhadores, que pode acompanhar passo a passo as sessões e ver como cada conselheiro se comporta e o que defende. Tem sido o trabalho duro, mas que vem garantindo o respeito da categoria.

Agora, na greve, a despeito de parte da direção do sindicato, que inclusive não quis que uma resolução das 30 horas fosse construída, os trabalhadores avançam. Venceram o conservadorismo da entidade sindical e garantiram por maioria a criação de uma resolução que implanta os turnos de seis horas na UFSC. Fruto do trabalho do grupo Reorganiza e das dezenas de discussões acontecidas na greve que paralisou os trabalhos desde março. E foi esse documento que os trabalhadores entregaram nesse dia 15 à reitora Roselane Neckel, com o pedido de que seja encaminhado ao Conselho Universitário para a aprovação. E foi esse momento de entrega que mostrou um ponto de viragem, outra vez, na UFSC, com uma nova geração assumindo a direção da luta.

O cerimonial da entrega foi disputado na unha dentro do comando de greve. Porque, mais uma vez, parte da direção sindical claudicou. Mas, como se contrapor à luta por melhorias? Foi necessário recuar e entregar o momento. E assim se fez. Todo o processo foi construído pela nova geração - com o apoio dos velhos lutadores - que inclusive comandou a assembleia. Foram criados simbolismos, místicas, alegorias e assim, realizou-se um belo funeral das 40 horas.

A reitora foi convidada, mas não desceu. Foi preciso que os trabalhadores ocupassem o gabinete e exigissem ser ouvidos. Muito a contragosto, a reitora veio até o saguão para receber o documento da resolução. "Não recebi o convite porque vocês fecharam a reitoria", disse, buscando, na crítica ao ato realizado, desculpas para sua ausência na assembleia. A resolução foi entregue com pompa. A morte, à frente de um caixão com as 40 horas, entrou, soberana. O caixão foi aberto e, nele, os trabalhadores colocaram tudo o que queriam enterrar: as 40 horas, o assédio moral, a falta de democracia. Foi um momento mágico. Depois, uma trabalhadora leu um texto que dava conta da luta mundial pelas 30 horas, reivindicação histórica dos trabalhadores. E, por fim, o documento foi entregue por uma trabalhadora mãe, simbolizando assim, o nascimento de uma nova era: a das 30 horas na UFSC.

Com cruzes e bandeiras, os trabalhadores da UFSC acompanharam o ato, aos gritos de "30 horas, já!" E, ao final, depois da entrega e de um discurso evasivo da reitora - que insiste em dizer que a lei não permite as 30 horas - todo mundo saiu em passeata dando a volta na reitoria, com a morte, o caixão, as bandeiras, a Banda Parei, num espécie de carnaval. Luta e alegria. Batalha e festa, porque, afinal, é só a força do trabalhador unido que muda a realidade.

Agora cabe à administração da UFSC encaminhar o debate sobre as 30 horas no CUN. Em greve ou não, os trabalhadores estarão atentos e em luta. Há um vento fresco soprando no campus. Os velhos lutadores, das duas últimas gerações, protagonistas de tantas lutas e conquistas, seguem firmes na batalha por outra universidade, capaz de garantir conhecimento comprometido com a maioria e espaço digno aos trabalhadores, mas sabem que esta é uma hora de passar o bastão. Não há nada a temer. A UFSC está em boas mãos. 
 

terça-feira, 13 de maio de 2014

Então, nasci!


representação feita por Paulo Renato

Era madrugada naquele longínquo 14 de maio de 1961, na cidade fronteiriça de Uruguaiana, Rio Grande do Sul. A noite fechada prenunciava que vinha chuva forte, possivelmente uma daquelas com vento, tormenta, coisa típica no descampado. Era uma hora da manhã quando a mulher deu um leve gemido, e se revirou na cama pequena. Não gritou nem fez escândalo, afinal era daquelas que sempre suportara a dor com estoicismo, coisa típica das mulheres das missões, acostumadas com a dureza da vida do campo.  Apenas percebeu que era hora. “Tem que chamar a parteira”, disse Tila, que guardava a filha grávida, chimarreando quietinha à beira do fogo. O marido saiu algo contrafeito. Veja se aquilo era hora de andar pelos matos. Ele saiu e o céu desabou. A pequena casa de madeira, que ficava no meio do nada, estremeceu ao som dos trovões. Os relâmpagos riscaram o breu. Seria uma noite turbulenta, e não só para Helena, que não via a hora de receber a guria que ali estava querendo sair. O vento soprava como se uma Iansã enlouquecida deslizasse pelos campos de arroz do povoado do Japeju. "Má hora para nascer", pensou a avó.

Eram duas horas da manhã quando, no meio da tempestade e da ventania, se ouviu o já conhecido som das rodas de madeira da velha carroça da Dona Chica, mulher que, desde há muito tempo, trazia à vida quase todos os bebês daqueles cantões do interior de Uruguaiana. Encharcada, a parteira desceu impávida e adentrou, com seu corpo grande cheirando a marcela. Atrás dela, o marido, pedindo a deus que tudo se fizesse naquela noite mesmo. Toalhas, água quente e muita reza. Esse era o ritual. Iansã, lá fora, seguia com seu rugido. A velha negra, filha da África, nem se importou, acostumada que era em domar os deuses. A mulher, na cama, apertou os lábios e cerrou as mãos. Estava segura com Chica. Nada havia para temer.

Então, em pouco mais de dez minutos de trabalho de parto, ali estava a pequenina, com pouco mais que dois quilos, vindo ao mundo no meio da tempestade de raios, relâmpagos e chuva grossa. Saiu mansinha, sem chorar. "Um miquim", admirou-se a avó. Chica levantou o corpinho, olhou a cara enrugada. Não bateu. Não era seu feitio. “Deus vai proteger”, vaticinou, e afagou-lhe a cabeça. A guria, igual que a mãe, anunciou o choro, mas não o cometeu. Na carinha enrugada, só a boca esboçou um esgar. As mãos cerradas davam conta de que seria guerreira. Assim chegou, dura como a noite.

Desde então foi assim, sozinha e atenta. Tão quieta que, por vezes a mãe a esquecia nos cantos da casa. E ela esperava, no berço, talvez desenhando mapas para futuras viagens. Mas, se não percebia o esquecimento da mamadeira, virava um bicho alucinado, tal qual a Iansã do dia do seu nascimento, diante de qualquer injúria ou injustiça. Aí, cerrava as mãozinhas e empertigava o corpo, com a cara amarrada, fervendo na raiva e agindo em consequência. 

A guria passou pela vida assim, cresceu pouco, madurou, completando já 53 voltas em torno do sol. Carrega no corpo a violência da noite tempestuosa que lhe acolheu, mesclada com a fortaleza da mãe, missioneira. Falta-lhe, talvez, a leveza. Nos caminhos que trilhou, muito mais viveu de punhos cerrados que de risos. Esse, talvez, seja o presente precioso que ela agora precise. Aquele pelo qual espera nesse século sombrio. 

Chegará?...

domingo, 11 de maio de 2014

Os rios de Florianópolis, escondidos no asfalto

Veja no vídeo produzido pela Pobres e NOjentas  - jornalista Miriam Santini de Abreu - imagens e entrevistas feitas na 5◦ Caminhada Jane Jacobs Floripa, com o tema "Os rios urbanos invisíveis de Florianópolis - rios da Bulha e Carreirão", realizada no dia 10 de maio de 2014.