sexta-feira, 28 de março de 2014

Polícia no campus da UFSC e a reação conservadora



Desde os anos 80 a cidade de Florianópolis vive ondas de crescimento e migração, sem ser acompanhada por um  bom Plano Diretor que organize o processo. Uma boa porcentagem de migração é de gente rica, cansada da vida nas megalópolis, com degradação e violência. Assim, essas pessoas endinheiradas buscam recantos bucólicos na linda "ilha da Magia", antes Desterro, para fugir das situações criadas justamente pela acumulação de capital por parte de uns poucos. Mas, uma outra parte das migrações é composta por gente que busca um lugar onde melhorar a vida. São famílias que saem do interior do Estado de Santa Catarina, ou de outras regiões do país, nas quais o emprego não se apresenta como alternativa para garantir a existência. Com as propagandas em rede nacional de que aqui é o melhor dos mundos, a europa brasileira, as pessoas são atraídas e vêm em busca da vida digna. Todo esse movimento fez com que a cidade crescesse para todos os lados. Aos ricos, estão reservados os melhores lugares, próximo às praias ou nas regiões centrais. Os empobrecidos ocupam áreas de risco, os morros, ou vão se espalhando pela periferia.

A região da Trindade, onde hoje está a Universidade Federal de Santa Catarina, nos anos 60, quando a instituição foi criada, nada mais era do que uma grande fazenda. Vazio urbano, espaço pronto para ser ocupado em nome do progresso. A construção da sede da UFSC fez com os terrenos se valorizassem e, logo, o entorno foi sendo tomado por prédios que viriam a abrigar os estudantes que começavam a chegar. Mas, não foi só a classe média e alta que fincaram suas bases ao redor da UFSC. Também os empobrecidos vieram, ocupando os morros que cercam a universidade, afinal, ali, a vida e o comércio começaram a vicejar. Nada diferente do processo de crescimento de todas as grandes cidades. Centros ricos e bem cuidados, periferia degradada. Um existindo por conta do outro, conectados na lógica da dependência e da superexploração.

E, como sempre acontece, a classe que cria a pobreza, ao mesmo tempo a repudia e sente medo. Já nos anos 80, o entorno da universidade causava temor. As "favelas" eram foco de marginalidade e o tema "segurança do campus" começava a se impor. Pequenos furtos, alguns assaltos e a presença dos empobrecidos nos caminhos da UFSC levaram algumas vozes a clamar pelo fechamento do campus, com cercas e portões. Como sempre acontece, outras vozes ecoaram entendendo que se a periferia existe é porque o centro a cria, portanto, há um papel de responsabilidade aí que precisa ser visto e discutido. A universidade como "casa do saber" precisa ter ousadia para criar o novo e não apenas reproduzir a lógica que vem de fora, dos mecanismos de repressão, por exemplo.

Assim que durante os anos 90, o tema segurança foi ponto nevrálgico no debate entre professores, técnicos administrativos em educação e estudantes. Derrotada a proposta de uma ação institucional combinada de trabalho no entorno periférico da UFSC, de lazer, educação, esporte, arte e cultura para as comunidades, o campus foi cercado, mas ainda sem portões que impedissem o livre circular das gentes que não faziam parte do seleto grupo universitário. Ainda assim, aqueles que temem os pobres e os preferem bem longe seguiram atuando, no sentido de garantir o fechamento e a ação da polícia dentro da universidade.

Com o crescimento da cidade e o consequente aumento da criminalidade, a região da UFSC não poderia virar uma ilha de paz em meio ao caos. Ela reproduz todas as relações que existem na sociedade. Assim, o campus passou a ser também alvo de ladrões de carro, assaltantes, traficantes de drogas e toda a sorte de ilícitos que existem em qualquer lugar, mesmo na linda Beira-Mar ou no Jurerê internacional. Mas, como a universidade deveria ter por princípio encontrar caminhos alternativos para o enfrentamento dos problemas causados pelo desenvolvimento capitalista, seguiram também atuando os grupos que acreditavam ser possível uma relação mais harmônica com as comunidades do entorno - preconceituosamente vistas como "foco de marginais" - e no enfrentamento da violência e do  crime que, de fato, existem e crescem exponencialmente. Foram realizados encontros, fóruns, debates e discussões envolvendo pesquisadores, estudantes, trabalhadores, comunidade. Muitas foram as propostas, mas praticamente nada era encaminhado.

Uma coisa sempre foi muito clara. A ação da polícia militar encerra toda uma lógica que não serve ao mundo democrático. No mais das vezes, em um espaço como a universidade, sempre permeado por lutas, protestos e discussões acaloradas, seria ingenuidade acreditar que, estando no campus organicamente, a polícia não atuaria como aparelho repressor destas atividades. É bastante comum no Brasil observar a polícia agindo sempre considerando o povo que luta como "inimigo da nação". Essa é a visão de uma polícia militar. Sempre temendo um inimigo interno. Assim, o debate sempre pontuou esses elementos. A segurança do campus e das pessoas que aqui circulam precisava então ser pensada de outra forma. Soluções criativas sempre existiram. Mas, nunca foram implementadas, seja por incompetência ou por decisão política mesmo. O tema segurança seguia em suspenso e aos administradores aparecia como mais fácil chamar a polícia, eventualmente, sempre que julgassem necessário. E isso se deu recorrentemente, no geral para reprimir estudantes ou trabalhadores. Em casos de crimes comuns, como assaltos ou roubos, a polícia sempre atuou, conforme sua competência e isso nunca foi colocado em questão.

Assim, os que dizem que quem é contra a polícia no campus defende bandido, precisam conhecer bem a história do tema segurança na UFSC, antes de saíram "atirando" contra os que - entendendo o papel crítico da universidade - preferem discutir e criar novas alternativas. Ninguém que faça esse debate é a favor de quem comete crimes. Apenas observam o problema desde outro ponto de vista: coletivo e social. A segurança não pode ser pensada só desde uma perspectiva pessoal: o meu carro, a minha bolsa, o meu problema. É certo que uma pessoa assaltada é também um ser mergulhado no social e é por isso mesmo que deveria pensar de maneira mais generosa no todo do qual faz parte.

Mas, o que se vê é a violência extrema contra os que buscam saídas coletivas. Ontem, um colega de trabalho, por exemplo, desejou que eu fosse assaltada para ver "o que é bom" e parar de defender bandido. Falava isso porque me colocava contra a ação desastrada - da polícia federal, militar e da segurança do campus - que acabou gerando um levante estudantil. E o mais grave é que essa não é uma fala isolada. Ela se  reproduz nas redes sociais como um vírus.

Dentro desse contexto voltamos ao começo: quem é o bandido, cara pálida? Quantas vezes na história da UFSC a entrada da polícia se deu para combater o crime real? Quantas vezes a polícia veio para reprimir estudantes ou trabalhador em luta? Ainda não tenho a conta certa, mas nesses 25 anos que trabalho na UFSC a presença repressora da polícia se deu - em maioria absoluta - contra trabalhadores e estudantes que lutavam por salário, bolsa estudantil, comida decente, moradia estudantil, condições de trabalho dignas e por aí afora. Agora, é certo também que quando tem um roubo, assalto ou tráfico, a polícia vem, sem alarde, sem choque, fazer o seu trabalho. Nunca foi impedida, nem poderia.        
    
Os episódios que gestaram o Levante do Bosque estão dentro desse contexto maior que envolve uma administração vacilante, incapaz de unificar a comunidade num projeto institucional de discussão sobre a violência. Estão ligados também a uma proposta de segurança interna que igualmente vacila entre o desejo de ser polícia e o medo da criminalidade crescente, sem que as condições de enfrentamento sejam dadas. Sofrem o acréscimo de existir uma batalha interna de poder, mais o ódio da mídia hegemônica contra uma administração que diminuiu verbas de publicidade. Tudo isso contribuiu para a ação espetacular e tragicômica que tornou a presença de cinco baseados no bosque no motivo para uma violência desmedida.

Notícias posteriores deram conta de que a reitoria tinha assinado um protocolo com a polícia, permitindo investigações no campus. Ora, ninguém pode assinar um protocolo com a polícia pensando que ela não vai agir como polícia. Então, temos aí também uma decisão ingênua e destituída de habilidade que igualmente tem de ser debatida. A administração da UFSC precisa de mais ousadia.

O fato é que, de novo, estamos mergulhados na discussão sobre a segurança, a violência e o papel da polícia. Isso é bom. Não precisava ter o que o houve,  mas pode-se agora avançar para o que sempre esteve em pauta: uma posição institucional sobre o tema, que possa atender todas as demandas. Precisa-se de mais segurança para andar no campus? Sim! Mas, para garantir isso existem outras formas, para além da presença da polícia. E depois, quem disse que os "universitários" precisam de mais segurança que o cidadão comum? Quem arrogou a comunidade universitária o direito de ser mais igual que a cidade?

Então, ainda que os viúvos e viúvas do regime de "mão firme" gritem por polícia para proteger os seus bens, é preciso pensar que estamos todos juntos nesse barco da vida regida pelo capital e que os problemas de segurança que temos precisam ser resolvidos no âmbito do debate geral sobre a forma como organizamos essa vida. A polícia desmilitarizada, parceira do cidadão, pode ser um caminho para a proteção contra os crimes. Mas, a polícia militarizada, que vê o cidadão crítico como inimigo, essa precisa ser questionada. Ainda que doa.

A vida é dura, ainda que só para alguns. Por isso, a luta!


terça-feira, 25 de março de 2014

Em Lages, Olimpia Gayo visita o diabo




Livro que conta a vida da freira franciscana que organizou as mulheres prostituídas de Lages será lançado dia 28 de março, na Praça Joca Neves

“Faz calor em Vacaria, interior do Rio Grande do Sul. São pouco mais de duas da tarde e, talvez por ser ainda tão cedo, os bares estejam vazios. Dois deles estão quase em frente à famosa Casa do Povo, um projeto arquitetônico de Oscar Niemayer. São modestos. Um balcão de madeira velha, algumas mesas de lata, cortinas de pano desbotado. Ali “se faz a vida” como diz a Irmã Olímpia, freira franciscana que desde os anos 80 se dedica a organização das mulheres marginalizadas. E é bem em frente a eles que a irmã para o carro e desce para uma visita. Do fundo do balcão os olhos de Sabrina se acendem. Ela abre os braços e corre para a porta pronta para enlaçar o corpo da freira num apertado abraço. Olímpia pergunta da família, das outras moças, conta histórias, dá boas risadas e se deixa ficar. Sabrina pergunta das reuniões, do encontro que vai acontecer em Caxias, para o qual ela e outras mulheres já estão se preparando. Elas combinam coisas, trocam informações e lá se vai Olímpia de novo, para outro bar”.

Essa é parte da vida da freira franciscana que a jornalista Elaine Tavares registra no livro “Olímpia Gayo visita o diabo”, lançado pela Companhia dos Loucos, editora independente de Florianópolis. Olímpia é reconhecidamente uma das mulheres mais importantes no âmbito da luta de classe do estado de Santa Catarina. Numa cidade conservadora, como Lages, na serra catarinense, ela ousou organizar as empregadas domésticas, os negros e as prostitutas. Nos anos 80, quando a Aids faz sua aparição no mundo, ela está mergulhada no processo de organização das mulheres prostituídas e acaba sendo fundamental na batalha pela proteção das mulheres no sexo e contra a discriminação.  

Sua história começa na pequena comunidade de Nova Roma, onde nasceu, mas é em Ipoméia, Santa Catarina, que aos 13 anos decide ser freira. A partir daí toda sua existência vai sendo marcada pela entrega ao outro, no amor e na compaixão. Bem mais tarde, será em Lages que ela vai consolidar o trabalho de organização das mulheres, abrindo portas para a emancipação feminina em todo o estado. Seu nome já está eternizado como uma precursora e mesmo com todas as adversidades que encontrou dentro e fora da igreja, ela nunca se dobrou. Hoje, vivendo em Vacaria, Olímpia segue seu trabalho junto aos marginalizados.

Toda a rica história dessa vida de comunhão com o oprimido está agora também eternizada em livro. E a cidade de Lages poderá, finalmente, conhecer a intimidade dessa mulher que foi como um farol a iluminar a vida de tantas mulheres. Será também o momento de a cidade se ver desnuda na sua relação com as mulheres prostituídas. Um olhar para dentro. Um mergulho que vale a pena ser feito. 

O livro “Olimpia Gayo visita o diabo” - cujo título evoca os “diabos” que precisaram ser enfrentados ao longo da caminhada - será lançado no Salão do Livro da Serra Catarinense, evento promovido pela Fundação Cultural de Lages, nesse dia 28 de março, sexta-feira, às 18h, na Concha Acústica da Praça Joca Neves, no centro de Lages, com a presença da autora – jornalista Elaine Tavares - e da irmã Olímpia Gayo. 

Vale a pena conferir essa história que é parte da história da cidade de Lages. 




segunda-feira, 24 de março de 2014

A necessária tarefa da crítica










As manifestações de junho, os protestos contra a Copa








Era 2003 e o então recém eleito presidente Luis Inácio iniciava o que ele chamava de “reforma da previdência”. Para os trabalhadores públicos, nada mais era do que a retirada de direitos, que haviam sido conquistados à custa de muita luta. E, para quem estava na direção de sindicatos à época, faltar com a crítica seria o mesmo que renegar toda uma história de luta. Afinal, em que “manual” revolucionário está a retirada de direitos?  Mas, aqueles eram dias de muita esperança para boa parte da esquerda nacional. Assumira a presidência alguém que vinha das fileiras do Partido dos  Trabalhadores e trazia uma bagagem significativa de luta trabalhista. Então, muita gente se calou. Lembro de uma das minhas primeiras intervenções contra a reforma, num encontro em que estava a senadora Ideli Salvatti, também recém eleita com mais de um milhão de votos em Santa Catarina. Argumentei que o que o governo estava planejando não era uma reforma, mas uma contrarreforma, pois, em vez de equiparar os direitos dos trabalhadores públicos e privados, fazia tirar direitos, fomentando ainda o ódio aos trabalhadores públicos, dizendo que eles tinham privilégios. A senadora imediatamente redarguiu, insinuando que eu estava ali fazendo o “jogo da direita”, criticando um governo que tinha a “melhor das intenções”.

Aqueles primeiros anos de governo petista foram turbulentos. Sabíamos que era difícil fazer a crítica sem fazer coro aos adversários e inimigos de classe, principalmente num momento em que a direita e parte da elite dominante - que nunca conseguiu “engolir” o ex-sindicalista - estavam em ataque cerrado, recém perdidas de seu controle da máquina pública. Corremos o risco de sermos etiquetados como “esquerdistas”, irresponsáveis, incapazes de compreender o momento histórico.  É que, na verdade, tínhamos plena convicção de não estarmos fazendo “o jogo da direita”, mas cumprindo o decisivo papel de apontar os desvios do caminho. A crítica, mais do que legítima, é necessária.

Passados todos esses anos, seguimos apontando as contradições, os limites, os erros, não porque queiramos o retorno de nefastas lideranças que, no passado, dilapidaram o país, mas justamente porque precisamos de outro caminho para o Brasil e para a América Latina que não seja o das quase insuperáveis dependência, subdesenvolvimento e subserviência.

Da mesma forma a crítica aparece diante dos chamados governos “progressistas” que se elegeram na América Latina depois de 1998, começando com Chávez, na Venezuela, e depois com Evo Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador, Mujica, no Uruguai ou até mesmo Ortega, na Nicarágua. E, tal e qual diante dos governos de Luis Inácio e Dilma, aparecem os dedos apontando para as vozes críticas, como se elas estivessem no mesmo patamar dos lamentos suspeitosos da velha direita. São argumentos incomparáveis. A crítica desde a esquerda quer superar o modelo ainda em vigência, quer avançar para outro modelo de sociedade, seja ela socialista ou outro nome que venhamos a inventar – mas sempre fincada nos ideais de justiça, equidade, equilíbrio. Os lamentos da velha direita são algaravias de despeitados – no mais das vezes cínicos  - que não aceitam perder qualquer parcela de poder.  A crítica desde a esquerda é a tentativa de realizar análises da realidade objetiva e apresentar propostas possíveis para que se possa avançar no rumo de outro modo de organizar a vida, e não para dar passos atrás. Logo, não se trata de “esquerdismo”.

Quando Lenin usou esse termo para também criticar a ação de alguns adversários, estava se referindo a posturas muito particulares, de um determinado tempo e um determinada conjuntura. Falava ainda de um tipo de gente dita de esquerda, mas que não conseguia observar com clareza os limites da política praticada naqueles dia, diante de uma realidade objetiva que exigia a luta renhida em todos os campos, legais e ilegais. Falava de uma gente que, para ele, não parecia ter compromisso com a mudança real, fazendo uma crítica abstrata e idealizada. Não nos parece o caso da crítica que se faz desde parte da esquerda no Brasil, pelo menos a qual me somo.

É fato que muitas coisas avançaram dentro dos atuais governos progressistas da América Latina, e que esse avanço, como bem lembra Lenin, tem a ver com o fato de que quando uma sociedade está completamente contagiada pelo capitalismo, a saída, fatalmente tem de ser lenta. Afinal, há um número significativo de pessoas que acredita nas promessas do capitalismo e precisa ser conquistada. “Temos de trabalhar com o que nos legou o capitalismo”, ensina Lenin. Mas, isso não significa que esses governos não precisem avançar ainda mais, para além das reformas. Daí a importância da crítica.

Porque também é inegável que muitos dos pilares da dependência seguem inabaláveis. A opção pela exportação de matéria prima, a exploração desenfreada dos recursos naturais, a rendição diante das grandes empresas multinacionais, a aliança com o agronegócio, a desqualificação e a falta de diálogo com as populações indígenas, ou o não reconhecimento de minorias que precisam ser melhor compreendidas, ouvidas e contempladas nas suas demandas.  Em linhas gerais, muito pouco se avançou na fuga do modelo de subdesenvolvimento que o centro do sistema definiu para as periferias. Mesma a Venezuela, que tanto tentou avançar, com Chávez, segue hoje bastante fragilizada, com a burguesia avançando mais e mais por dentro do governo, dominando ainda o setor financeiro, espaço estratégico.

Agora, no Brasil, na medida em que se aproximam as eleições presidenciais, os ânimos voltam a se acirrar. De novo, qualquer voz crítica é logo colocada de mãos dadas com a velha e nova direita. Isso é jogo de manipulação. É incapacidade política de lidar com o dissonante. É fragilidade dos que hoje estão no centro do poder, ou apenas má fé. É certo que nos momentos de embate, como foram as jornadas de junho e seguem sendo as lutas por um transporte de qualidade, por vezes pode acontecer uma certa confusão e até uma mistura, visto que as ruas são absolutamente democráticas, no sentido de que, nelas, todos cabem. E aí, não resta dúvida de que a direita se aproveita e soma com os críticos. Mas, se isso acontece, a responsabilidade não pode ser colocada sob as costas de quem tem sistematicamente feito a crítica no campo da esquerda. Afinal, se uma massa considerável de gente está gritando por transporte de qualidade, é porque não há transporte de qualidade e isso é responsabilidade do governo – seja municipal, estadual ou federal.  Se o governo de esquerda, ou progressista ou social-democrata não está cumprindo suas promessas ou não está fazendo o trabalho direito, é fundamental que existam as vozes críticas para que se acerte o rumo, ou para que se possa notar onde está o furo. A crítica dos lutadores sociais, lideranças sindicais e velhos militantes de esquerda, insisto, não é a mesma da direita. Bem como as manifestações que acontecem nas ruas não são apenas de “mercenários americanos”.

Junto com os provocadores de sempre, os mercenários, os manifestantes a soldo da direita, também estão pessoas que, sem uma organização política institucionalizada, também têm suas demandas, suas reivindicações e suas mazelas a resolver, sem encontrar eco nos governantes. Bem como também saem às ruas militantes sociais organizados, gente de partidos políticos, com bandeiras históricas bem definidas. Há que se ter a delicadeza e a astúcia política de observar a realidade tal como ela se apresenta.

Dentre os descontentes, por exemplo, está uma parcela da população que precisa de cuidado. É a dos indígenas, para quem, por exemplo, todo esse universo de conceitos – direita, esquerda, mercenários, EUA, esquerdismo, etc... – não faz qualquer sentido. Eles caminham numa outra lógica, sob outro logos, outra episteme, com outras bandeiras e demandas, fruto de uma exclusão que perdura por séculos,  quando não o genocídio e o massacre. E são povos que aqui no Brasil, no Equador, na Venezuela, na Colômbia, no Paraguai, têm sido olimpicamente ignorados nas suas reivindicações históricas ou até mesmo em demandas conjunturais, como é o caso da estrada que querem passar por dentro de um parque na Bolívia, para atender exigências do mercado. No caso do Brasil, vivemos cotidianamente a violência contra essa fatia da população que, por ser pequena, não pode ser ignorada. Pessoas estão morrendo, sendo assassinadas, massacradas. O governo não pode fechar os olhos a isso e precisa dialogar levando em conta a diferença de episteme. O que se vê é que o choque civilizacional acontecido em 1492 segue perpetuado nas relações diárias. O índio ainda é olhado por cima, como se fosse um ser de segunda classe. E isso ocorre também em segmentos importantes da esquerda latino-americana, que costumam, inclusive, desqualificar a luta indígena, atribuindo-lhe adjetivos como o “pachamamismo”, aludindo à defesa de Pacha Mama (a terra) feita pela maioria dos povos originários como uma coisa ridícula. É certo que existem grupos sectários, mas não é a maioria. A defesa da Pacha Mama está ligada ao conceito de equilíbrio que os povos originários tem, na relação com a natureza. Não é uma volta ao tempo das cavernas, é uma retomada dialética de conceitos que foram solapados pela opressão.

Assim que a necessária tarefa da crítica precisa ser preservada. E não deve ser levada como uma ofensa pessoal. Sabemos que os governos progressistas e sociais-democratas da América Latina estão cheios de boas intenções, mas isso não é suficiente no tabuleiro da política. Assim, cada um deles deveria ter a capacidade de ouvir a crítica daqueles que querem avançar para a construção de uma sociedade diferente. Todo o cidadão que critica precisa ser escutado desde o lugar onde formula sua crítica, porque assim fica mais fácil compreender a natureza da crítica.  

Um bom exemplo é o que se vê na Venezuela. Quem são os que estão puxando os protestos e ocupando as ruas em maioria? Que classe social representam? Pois é fácil perceber que é a representação da elite venezuelana, perdida de seus privilégios. A esses “manifestantes” pode-se manifestar respeito, estão no seu direito. Mas há que se observar bem quais são as suas demandas. As reivindicações da maioria dos que protestam estão ligadas a continuidade da exploração, da miséria, da exclusão do pobre. Ou seja, são bem diferentes das demandas dos indígenas venezuelanos, por exemplo, que, desde seu lugar de secularmente ignorados, reivindicam mudanças e melhorias na vida.  

Outro exemplo vem daqui, da nossa casa, o Brasil. Vivenciamos na última semana a tentativa de recuperação de um momento do passado, com a Marcha da Família, com Deus, contra o Comunismo. Movimento legítimo, de gente que pensa diferente. Mas, quem são essas pessoas, a quem representam? Fácil. Viúvos e viúvas do regime de exceção que tanto mal fez ao Brasil, playboys descabeçados, neonazistas, projetos de fascistas, ou seja, tudo o que representa o atraso, a violência, a exclusão.  Logo, uma crítica muito diferente da que se faz exigindo direitos ou rompimentos com a dependência e a superexploração. Nós queremos seguir em frente, com liberdade, com soberania, com paz. Já os saudosistas da ditadura militar querem a barbárie, a falta de liberdade, a tortura, a exclusão. Nada em comum, portanto.

É fato que o senso comum, as pessoas que não têm condições de acessar mais informações além da que chega via TV, podem se confundir. Até porque a televisão é pura manipulação. Mas, não é por isso que devemos calar a boca e fingir que tudo está bem. Ou que, por isso, precisamos preservar o governo atual de críticas. Não. Não queremos a ditadura, nem os governos neoliberais passados. Mas, temos que apontar os equívocos, travar o embate e colocar nossas demandas que buscam caminhar para além do que aí está. 

Também é fato que pode parecer bem mais fácil defender um estado de bem-estar social, com mais um pouco de direitos aqui e ali, uma melhoria aqui e ali. Mas, ainda assim, e a experiência europeia tem nos mostrado, fica um universo muito grande de excluídos. E como já dizia o comandante Guevara, "enquanto houver um injustiçado", temos de ser companheiros. Não podemos ser acusados de “aliados da direita” só porque sonhamos com um mundo diferente, para além do bem-estar apenas para alguns. Posso concordar que a proposta do sumak kausay dos indígenas equatorianos, ou o sumac camaña, dos aymara, ou a terra sem males, dos guarani, que propõe um modo de organizar a vida com equilíbrio na relação com a natureza, com equidade na relação humana e com a primazia da proposta comunitária pode não ser a melhor para todos, uma vez que não é fácil se descontaminar desse mundo de egoísmo, individualismo, medo e exclusão. Mas é com essa utopia indígena que eu, particularmente, sonho. E é em direção a isso que eu caminho. 

Junto comigo, outros tantos... Vai daí que não posso me furtar a fazer permanentemente a critica do mundo que aí está. Com Dussel, entendo que a universalidade da ética está na vida da comunidade das vítimas do sistema que hoje mais oprime e destrói: o capitalismo. Que a batalha siga, no embate das ideias e na conquista de um tempo novo. Com amor, com paz, com respeito, mas sem vacilação.