quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Terra, Trabalho e Teto: tudo que se quer...






São nove horas da manhã e o dia está nublado. Talvez por isso a estrada que vai até Canasvieiras, no norte da ilha de Santa Catarina, esteja quase vazia. Logo depois do viaduto de Jurerê, entra-se no espaço que há umas três décadas era considerado o “celeiro da ilha”, de farta produção de hortaliças, mandioca e milho. Isso sem contar o peixe que, tirado do piscoso rio Ratones, completava a base da alimentação do ilhéu. Com o passar do tempo e a descoberta do turismo, os nativos foram sendo conquistados com promessas de progresso. Assim,  boa parte das terras foi  vendida para grandes empreendimentos. A região foi sendo tomada pelas construções e a calma praia de Canasvieiras acabou se tornando uma espécie de pequena Argentina, tamanho o fluxo de turistas daquele país. 

Mas, apesar da grande densidade de gente e casas próximo à praia, ainda restam grandes espaços de terra no norte da ilha, principalmente na beira do histórico rio Ratones. Não sem razão. São quilômetros e quilômetros de área agricultável, hoje totalmente improdutiva. Para quem cruza aquele caminho todos os dias, o latifúndio vazio vislumbrado da janela do ônibus aparece quase como uma afronta. Tantos pais e mães de família sem uma casa para morar, e aquela imensidão verde sem serventia social.

Foi esse sentimento que levou cerca de 60 famílias de gente sem teto, sem condições de pagar o alto preço do aluguel praticado na “ilha da magia”, a ocupar uma dessas antigas fazendas. A área tem 600 hectares e abrigava dentro dela apenas 15 cabeças de gado, cujos donos nem são os que se dizem donos da terra. Segundo a organização do movimento, a propriedade do espaço seria de um grupo de pessoas e empresas que pretende fazer ali um campo de golfe.  A ocupação que se consolidou no dia 16 de dezembro de 2013, agora já tem 150 famílias alojadas e organizadas. “Todos os dias chega mais gente querendo ficar na ocupação. Pena que não dá para abrigar todo mundo. É que só na ilha há um déficit de 15 mil moradias, Ou seja, são 15 mil famílias cadastradas na prefeitura, esperando, algumas há mais de 20 anos, por uma casa para morar”, diz Rui Fernando, da comissão de organização.

A cidade, desde o final dos anos 80 do século passado, tem recebido um fluxo migratório muito grande, incentivado pela promoção do turismo. Mas, no geral, os governantes acolhem bem apenas os turistas endinheirados, como se pode observar das declarações dos  secretários de Estado de Planejamento, Murilo Flores e o de Turismo, Valdir Walendowsky: “Temos que qualificar o turista que chega em Santa Catarina. Ele tem que ter mais dinheiro para gastar mais”. Só que junto com o turista rico, precisa chegar também aquele que vai trabalhar para manter a estrutura. É assim que também aportam na ilha levas de migrantes em busca de trabalho.

A migração

Num país de tantas desigualdades, migrar sempre foi uma constante. Viver no interior do Brasil é sinônimo de falta de oportunidades, principalmente para aqueles que não têm uma formação específica ou não têm terra. Diante da impossibilidade de sobreviver e cuidar da famílias, as pessoas buscam mudar de cidade, indo para onde seja possível trabalhar. Segundo o último censo do  IBGE mais de 35% dos brasileiros já não vivem mais nos seus lugares de nascimento. E o motivo da mudança é sempre o mesmo: a necessidade de melhorar a vida.  A cidade que mais atrai migrantes ainda é São Paulo, mas, desde há alguns anos, o Estado de Santa Catarina, por ser tão cantado em verso e prosa como a “europa brasileira”, tem sido o destino preferido de uma fatia muito grande.

Foi assim com Maria José dos Santos, 46 anos, que saiu de Palmares, no interior de Alagoas, porque não tinha mais como manter a vida. Nascida no histórico reduto do Quilombo de Zumbi, a vida só lhe reservou pobreza. Sem um pedaço de terra para plantar, o jeito era viver do que desse. Um biscate aqui, uma faxina, uma roupa para lavar. Então, um dia, o filho escutou na televisão que Florianópolis era um lugar de muitas belezas e resolveu arriscar. Juntou os trocados e veio em busca do sonho de viver melhor. Dois meses depois mandou buscar a mãe. Hoje, ele até tem um emprego, mas é quase impossível manter a mãe, a esposa e os filhos tendo de pagar o aluguel, que é alto demais. “A gente estava morando na Serrinha,num barraco, apertado, e o dinheiro ia quase todo no aluguel. Tava difícil dar de comida pra todo mundo”.

Elen Maria Silva também pegou um ônibus em Belém do Pará e arriscou encontrar uma vida melhor em Florianópolis. “Me disseram que aqui era bom, que a cidade vivia de turismo, hotelaria. Eu achei que podia encontrar trabalho já que lá as coisas estavam muito difíceis. Eu vivi 30 anos em Belém e nunca tive uma ocupação de carteira assinada. Aqui em Florianópolis eu tive a minha primeira experiência de ver a carteira assinada. Foi muito bom. Mas, o que me mata é o aluguel. Eu estava morando no Saco Grande e lá eu tinha de pagar 600 reais por mês. Era praticamente o salário todo e eu tenho uma filha pra criar”.   

Jacson Gueveda não veio de tão longe, sua cidade natal fica no Oeste de Santa Catarina. Mas, os motivos são os mesmos. Falta de trabalho. “Lá, a gente que não tem terra só consegue trabalho na safra. Fora disso, não há o que fazer”. Morando no bairro José Nitro, num pequeno barraco que consumia mais da metade do salário, ele também sentia falta da velha cultura de tomar um chimarrão na frente de casa, de plantar um hortinha nos fundos. Ali não havia nem pátio, nem calçada. Isso sem contar o medo de ser atingido por uma bala perdida. “Aquilo ali não era vida e a gente tem direito de viver bem”.

Cláudio Barbosa dos Santos é veterano em Florianópolis. Chegou do Rio de Janeiro há 35 anos. Sendo neto de uma família nativa, ele foi morar na casa dos avós, no bairro Serrinha. Mas, agora, com o casamento, teve de buscar vida própria. “É pouco espaço pra muita gente, não deu pra ficar na casa da vó”. Trabalhando como vidraceiro, Claudio tampouco conseguia bancar o aluguel. A “ilha da magia” é ingrata com os mais empobrecidos.

Todas essas pessoas de vidas singulares tem agora uma coisa em comum: o sonho de conquistar um lugar para chamar de seu. Eles dividem a terra e os barracos da ocupação Amarildo de Souza, esperando que, enfim, se cumpra aquilo que a Constituição brasileira define como um direito: moradia digna.

Luta e esperança

A manhã abafada revela uma azáfama intermitente na ocupação. Algumas pessoas cuidam da horta, que já está com alfaces bem grandes e muito tempero verde. Outros seguem ajeitando os barracos de lona que agora servem de casa. Mulheres lavam roupa que colorem os fios entrecruzados do acampamento. Os índios Xokleng que vieram também para a ocupação, tecem seus cestos e criam os artesanatos a serem vendidos na praia, que fica próxima do lugar. “Nós pedimos na prefeitura um espaço para ficar. Essa época de turismo é boa para nossas vendas. Mas, a prefeitura não quer nem saber de nós. Então, viemos pra cá, onde fomos acolhidos”, revela o cacique.

Os barracos, feitos de taquara e lona estão montados como numa pequena vila, em distância simétrica, para que cada família possa proteger e se sentir protegida. Há uma equipe que cuida da segurança, outra da estrutura, de saúde e mobilização. Também foi criada uma ciranda para cuidar das crianças enquanto os pais saem para trabalhar. “Hoje eu saio tranquila, porque sei que aqui tem segurança. Minha filha está bem cuidada”, diz Elen. E assim é. O filho de um é filho de todos. 

A proposta da ocupação Amarildo é de criar naquela área uma comuna da terra, uma agro-vila capaz de se auto-sustentar. “A intenção é de que a terra seja comum e que a gente comece a produzir alimentos aqui, como acontecia antes. Plantar comida, alimento orgânico, que sirva para o consumo das famílias e também para a geração de renda”. É por conta dessa proposta de reforma agrária popular que as famílias querem o debate do caso da ocupação na Justiça Agrária e não na Justiça comum. “Nós entendemos que essa terra é um latifúndio improdutivo e por isso queremos que a luta se dê no âmbito do governo federal, já que a lei é clara: toda a terra deve cumprir uma função social. Essa terra aqui não está cumprindo o que manda a legislação. Assim, nós já fizemos denúncia na Ouvidoria Agrária do Estado e o Incra já se posicionou favorável as negociações e deve vistoriar a área”, explica Rui.

 Mas, essa não será uma luta fácil. Desde os primeiros dias do ano a Justiça já definiu a reintegração de posse para a Agropecuária Paludo e o Grupo Habitasul, que se intitulam donos da área. A polícia militar já esteve no local notificando as famílias e tem realizado operações de intimidação com o helicóptero. A batalha na Justiça segue. Segundo os moradores da ocupação foram encontrados documentos que comprovam irregularidades nas atas de zoneamento, preparadas para garantir a construção do campo de golfe. “Nós esperamos que a discussão se dê na Justiça Agrária e vamos lutar até o fim para garantir nosso direito de morar”.

“Vagabundos...Vão trabalhar!...”

O debate público sobre a ocupação Amarildo faz aflorar os preconceitos mais toscos e desvela uma cidade racista e discriminadora. “E se fosse o teu terreno, tu ia deixar ocupar?”, pergunta um leitor. Ora, uma ocupação urbana só acontece em áreas improdutivas, que servem à especulação, sem cumprir sua função social. Nenhuma família entraria num terreno que está sendo ocupado como moradia ou como produção. Logo, esse argumento é furado.

Outra fala eivada de preconceito é a de que os ocupantes são marginais. “Essa gente que vá trabalhar”. Bom, não há um morador da comunidade Amarildo de Souza que não trabalhe. Ou têm emprego formal, de carteira assinada, ou estão envolvidos com o trabalho informal, tal como o de pedreiro, eletricista, faxineira, vidraceiro, catador. Ocorre que essa é uma gente empobrecida, frequentemente explorada, que mal consegue garantir comida aos filhos. Daí não poder andar “bonitinha” como querem os reacionários de plantão. “A gente também tem o direito de ter uma casa pra morar. Nós somos trabalhadores, estamos aqui batalhando pelo nosso sustento. E somos nós que construímos essa cidade. A gente faz os prédios, a gente limpa, a gente serve. Não somos vagabundos”.

De fato, se há algo que as famílias acampadas querem é trabalho e teto. Para isso estão dispostas a todos os sacrifícios. Hoje, pouco mais de 20 dias depois da histórica decisão de ocupar o latifúndio urbano, não é sem emoção que as mães olham para os filhos pendurados nos balanços, a brincar, sem medo de enfrentar a violência da periferia. “Por que os pobres não podem morar bem? Por que não podem ter o direito de criar os filhos em segurança?” As famílias que formam a ocupação Amarildo estão dispostas a iniciar uma nova forma de organizar a vida: coletiva, solidária, comum. 

O espaço de terra que agora ocupam tem duas opções: servir a meia dúzia de homens ricos, consumindo litros e litros de água do rio Ratones para irrigar um campo de golfe, ou servir de moradia e espaço de produção agrícola de 150 famílias. O que pode ser mais justo? O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein definiu de maneira singela que os limites do pensamento de alguém são os limites do seu mundo. Daí sua frase enigmática: “o mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes”. Talvez por isso seja quase impossível ao que tem condições de viver bem, que tem um bom emprego, compreender o desespero daquele que não consegue colocar comida na mesa. Mais fácil é etiquetar de marginal, vagabundo, ladrão. Colocar na vítima do sistema a culpa da sua dor. Afinal, se for pensar nos motivos de tanta desigualdade, a pessoa terá de se deparar com a verdade de um sistema que para existir precisa explorar e oprimir uma grande parte das gentes. Então, terá de tomar uma definitiva e radical decisão: de que lado ficar?

No sopro da esperança

Já é quase meio dia quando vou deixando o espaço da ocupação Amarildo. No meio das árvores frondosas e sombreiras, as crianças brincam de balanço, correm, dão sonoras gargalhadas. Vigilante, um trio de mães acompanha a movimentação. Jovens cortam taquaras e arrumam os barracos. Outros tomam chimarrão enquanto fazem o seu turno de ronda e segurança. Há medo da desocupação porque, em tanto tempo, alguns nunca se sentiram tão felizes. “Eu não me sinto numa ocupação. Aqui é minha casa. Eu moro aqui”, diz a paraense que trabalha como camareira.

Um carro passa veloz e joga um artefato para dentro da comunidade. Ouve-se o estrondo. Tudo para. As crianças engolem o riso e correm para o portão. As mulheres assomam nos barracos. Será a polícia? Serão as máquinas? Por enquanto não. A juíza Maria Tereza Costa e Silva, alegando motivos humanitários, suspendeu a liminar de reintegração.  É o terrorismo, a semeadura do medo, a intimidação. Ninguém se machuca, mas os corações ficam aos saltos. Passado o susto, todos voltam aos afazeres. Sabem mais que ninguém, que não será fácil. Mas, se têm medo, também têm coragem. O vento sibila entre as árvores, a criançada volta à algaravia. A ocupação Amarildo vai resistir...

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A terceira e violenta votação do Plano Diretor








Tem sido assim desde as primeiras formações humanas. Quem tem o poder numa comunidade e o exerce para benefício próprio, fatalmente terá medo das gentes. A “malta”, a “raia miúda”, aqueles que ficam fora do círculo do gran senhor, sempre estarão tensionando o poder, exigindo direitos, buscando um lugar no banquete da vida. E é contra esses, no geral a maioria, que os senhores formam exércitos. Muito mais do que para atacar outros povos, é para defender seu poder.  Foi assim nas antigas civilizações, e continua nos tempos atuais. Não é à toa que, hoje,  existem as polícias militares. Não são grupos para defender o cidadão, embora até cumpram esse papel vez em quando. Existem para proteger o poder, seja ele do estado ou dos ricos. É por isso que as PMs veem qualquer mobilização popular como uma ameaça, e os manifestantes como inimigos. Não pode ser diferente. Essas corporações treinam assim os seus membros. 
Nesse dia 6 de janeiro, mais uma vez essa realidade se expressou. Diante da presença de um grande números de pessoas, protestando contra a aprovação de um Plano Diretor para a cidade, que os vereadores mostraram sequer conhecer, as forças policiais cumpriram seu papel de tratar as gentes como inimigas mortais. 

Tudo começou bem antes da sessão iniciar. As portas da casa foram fechadas, numa clara alusão de que, desta vez, a população não poderia entrar. Não importa que a Câmara de Vereadores seja chamada de “casa do povo”. Isso é uma ilusão num sistema que se diz democrático, mas que não resiste a uma mínima pressão. A democracia só se sustenta se há um manso rebanho. Qualquer rugosidade na “paz” do poder, e a democracia mostra sua cara torta. Os guardas municipais fizeram um cordão e avisaram. “Só vão entrar 80 pessoas. É a lotação da casa. Só pode ficar sentado”. Ora, a rua estava cheia de gente que queria acompanhar a votação, ver de perto a canalhice anunciada. 

O argumento dos guardas era de que os bombeiros instruiam para não deixar entrar mais gente do que permitia o plenário, com pessoas sentadas. “Mas como é que para outras votações pode ter gente em pé?”, perguntavam. “As regras mudaram”, diziam os guardas. E o medo bailava nos rostos constritos. Gente demais, povo demais. Medo demais. Os que estavam dentro pressionaram para abrir a porta, os que estavam fora também. Estabeleceu-se o impasse e o empurra-empurra. Nessa hora, a força assoma, vestida com as armas do poder. Cassetete, arma de choque, gás de pimenta. Os jovens, armados só de coragem, gritavam. E o medo na cara dos guardas fazia com que se valessem da força artificial. Dentro da Câmara, as armas de choque reluziram, afastando o povo das portas. 

Do lado de fora a Polícia Militar fazia um cordão, igualmente armada. Ainda assim, por muito tempo as gentes arremeteram contra a porta, sem contudo rompê-la. O fuzuê se estendeu por quase uma hora, tempo suficiente para que, lá dentro, no plenário, os vereadores realizassem a absurda votação, surdos à gritaria. Era para ser apreciado o texto final do projeto, que não existia na votação do dia 30. O vereador Afrânio havia pedido vistas. Não era possível que uma casa legislativa legislasse sobre um texto que nem existia de fato. Pois no dia de hoje tampouco havia o texto. Ainda assim, enquanto lá na porta do plenário, a polícia e a guarda municipal impediam a entrada das gentes, a maioria dos vereadores aprovava o texto inexistente. 

Como das outras vezes, apenas três votos contrários: Pedrão (PP), Afrãnio (Psol) e Lino (PT).    

Terminada a sessão, as portas se abriram. Sairam os manifestantes para a frente da garagem, onde pretendiam esperar a saída dos vereadores. De novo, o poder militar se interpôs diante daqueles que se manifestavam contra a ilegalidade da votação. No rosto dos militares a expressão vazia de quem atravessa o outro, porque é inimigo. Nenhum vestígio de empatia, afinal eles também são moradores da cidade e sofrerão as consequências do que foi votado. 

O tensionamento seguiu, embora não houvesse nada a guardar. Não havia vereadores, não havia carros, não havia nada. Só um portão, tapado pelos soldados. Os manifestantes cantavam e gritavam palavras de ordem. Então, toda a tensão explodiu. Irritados com alguns jovens que brincavam com spray de espuma, os soldados partiram para cima, tentando arrancar o spray. Foi o que bastou. Explodiu a massa. Um garoto foi preso, arrastado para o camburão. Outros receberam pauladas na cabeça e sangravam, uma garota, já dominada por um PM levou spray de pimenta na cara. Aturdidos e irritados com a resposta desproporcional da polícia contra jovens desarmados, as pessoas começaram a jogar coisas. Lixeiras, cones, pedaços de pau. Correria e comoção. Brutalidade e violência por parte da polícia. 

Terminava de forma lacônica a votação do Plano que vai desenhar a cidade pelas próximas décadas. Um plano desconhecido pelos vereadores, mas não pelas gentes. Sabe-se  muito bem que algumas áreas da cidade serão adensadas de maneira absurda, que espaços de preservação serão liberados para construção, que o cimento tomará conta do verde, que a ilha – hoje com 350 mil habitantes  - será preparada para receber mais de um milhão de moradores. Tudo isso sem qualquer planejamento no que diz respeito ao abastecimento de água, de energia elétrica e de saneamento. O que a “turma do cimento” quer é erguer prédio. Não importa se não haverá estrutura, ou se as pessoas não conseguirão se mover. Afinal, um apartamento em Florianópolis hoje, em áreas nobres, está entre 700 mil reais e um milhão. É dinheiro demais. O que vale é vender. Os moradores, depois, que se virem. 

Por três vezes seguidas, os vereadores votaram em propostas não discutidas com a comunidade. Muitas delas incorporadas ao Plano por pedido de seus “patrocinadores”, e pela própria prefeitura, através do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis, o IPUF. Na primeira votação aprovaram em bloco, sem conhecer o conteúdo das mais de 600 emendas apresentadas, 300 delas. Na segunda votação se recusaram a discutir o fato de que haviam sido quebradas várias regras do regimento interno e do Estatuto da Cidade. Patrolaram. Nesse dia 6, em terceira votação, repetiram a dose. Alheios ao desejo das gentes que queriam entrar para acompanhar o processo, aprovaram o texto final, igualmente desconhecido por eles.  

O que se viu em Florianópolis foi  expressão viva do que é a “democracia” do capital. Um legislativo dominado, insensível, atuando de forma irregular, sem levar em conta o clamor popular. Sem considerar um trabalho comunitário de sete anos e a construção de um Plano Diretor participativo. O projeto aprovado é completamente diferente do que foi desenhado pelas comunidades. Para defendê-lo, a força bruta da polícia. Com medo, mas sem vergonha, os vereadores usaram a PM para sua proteção e para a proteção da proposta daqueles que verdadeiramente mandam na cidade. 

Enquanto isso, em algum lugar dos Estados Unidos – alguns dizem que na Disney – o prefeito da cidade, César Souza Junior, aproveitava suas férias, completamente blindado da turbulência popular que ocupou a frente da Câmara. O “bom moço” voltará em alguns dias e poderá vetar ou aprovar o Plano. Alguns, inocentes, ainda acreditam que ele possa vetar algumas emendas, como as que reduzem os espaços de proteção ambiental. Mas, o certo é que se houver veto, será para beneficiar algum empreendimento. Há ainda uma certa esperança na Justiça, uma vez que o processo de votação está eivado de irregularidades e há uma ação em andamento. Mas, sabe-se que a Justiça também está do lado dos poderosos.

Então, resta a luta nas ruas. Só o povo unido e em ação pode mudar o plano. Só as gente em movimento são capazes de provocar o medo aos que se encastelam no poder. Eles tem a força da polícia, é certo. Mas, momentos há, em que essa “raia miúda” que eles desprezam tanto, assoma com tanta força que ninguém pode detê-la.