quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O destino do Hospital Universitário da UFSC














Ato contra a EBSERH






O principal conselho da UFSC, que é o que define, em última instância, todas as políticas para a universidade, realizou nesse dia 07 de outubro, a primeira discussão sobre o destino do HU, o Hospital Universitário.  Em pauta, a adesão ou não à famigerada EBSERH, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, criada pelo presidente Lula, como último ato de sua gestão, em 2011. Essa empresa foi a solução dada por Lula para um problema crônico dos HUs: a falta de pessoal. Mas, ao criar uma empresa de direito privado o então presidente incentivava ainda mais a privatização da saúde. No debate realizado pelo CUN já foi possível medir a temperatura sobre o tema. A maioria dos professores que se manifestou apontou desconhecimento quase total sobre a questão. Técnicos-administrativos e parte da bancada estudantil – que são minoria - defenderam a não adesão à empresa, e os diretores do HU, apelando para discursos emocionais, defenderam que essa é, hoje, a única saída para o hospital no momento. 

Entenda a questão

Os tempos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) impuseram um longo processo de sucateamento das universidades públicas. Para quem não lembra, os dois mandatos de FHC foram marcados por uma onda de privatizações. Telefonia, energia elétrica, empresas públicas, tudo foi entregue às mãos privadas sob o argumento de que o público é lento, atrasado e ineficaz.  Naqueles anos, a universidade pública também sofreu ataques. Como não foi possível privatizar, por conta da resistência dos trabalhadores, o governo foi sucateando. Uma das formas de fazer isso foi a não contratação de pessoal. Passaram-se oito longos anos sem concursos públicos. 

Por conta dessa situação, os Hospitais e mesmo as universidades, começaram um processo de contratação de pessoal via fundações de apoio, que são entidades de direito privado, encravadas dentro das instituições públicas, e que atuam no sentido de apoiar as universidades naquilo que a lei do serviço público não permite. Uma delas era a contratação de trabalhadores. E foi assim que o HU de Santa Catarina conseguiu funcionar, com um número bastante grande de trabalhadores, celetistas, contratados pelas fundações. 

Durante todo esse tempo, as fundações estiveram envolvidas em várias denúncias de irregularidades e sua presença dentro das universidades era - e ainda é -  sistematicamente questionada. Muitos escândalos explodiram em vários estados do Brasil, inclusive em Santa Catarina. Assim, os órgãos fiscalizadores do público foram apontando como uma das mais complicadas irregularidades justamente a contratação de pessoal, e tudo isso acabou numa decisão de que esses trabalhadores precisavam ser demitidos. Quando essa hora chegou, Lula já era o presidente do Brasil.

A solução apontada pelos movimentos de luta pela educação e pela saúde já tinha sido dada, desde os governos de FHC: contratação de pessoal via concurso público. Mas, nem FHC nem Lula acataram essa ideia. FHC por sua visão privatista e Lula porque já estava convencido de que as universidades deveriam enxugar seus quadros, apenas com a manutenção de trabalhadores considerados estratégicos, ou seja, de nível superior. Os demais estavam fadados à extinção e seus espaços deveriam ser ocupados por contratações terceirizadas. 

Assim, quando o Tribunal de Conta da União exigiu o fim da contração de trabalhadores via fundação, o governo precisou definir um rumo. Os reitores das universidades realizaram vários encontros com o governo. Diziam que sem os trabalhadores os hospitais iriam parar, criando um caos na saúde nacional, visto que os 46 hospitais universitários são responsáveis pela formação de médicos, enfermeiros, nutricionistas e vários outros profissionais ligados ao campo da saúde. 
Sem ouvir os movimentos sociais, Lula decidiu, no último dia de seu governo, criar a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, uma empresa de direito privado, que funcionaria como uma espécie de fundação única, atendendo assim aos desejos dos reitores que queriam uma solução rápida para o problema das contratações.  O discurso presidencial era de que essa seria uma empresa pública, por tanto, não estaria privatizando os hospitais, apenas dando oportunidade de as universidades fazerem o que precisavam, sem a “burocracia” da lei que rege o serviço público. 

O lobo atrás do cordeiro

Uma olhada nas letrinhas pequenas do estatuto da EBSERH mostra claramente que o que rege a empresa é a lógica privada. A saúde é colocada na mesa como uma mercadoria qualquer, um produto, e os hospitais são vistos como uma empresa que gera lucro, a tal ponto de as especialidades médicas serem vistas como “produtivas” ou não. Ora, o que é uma especialidade produtiva? A que recebe mais doentes? A que usa remédios mais caros? Sendo assim, o que seria o doente? Um receptáculo gerador de lucro? E se o doente não tiver uma doença “produtiva”, o que fazer?

Com o argumento de que não teria como bancar a contratação e trabalhadores públicos, o governo prefere gastar milhões de reais na construção de uma nova estrutura, com sede em Brasília, mas com superintendências regionais. Isso significa centenas de outras contratações – não apenas de trabalhadores para os HUs – mas para a manutenção da própria máquina da empresa. Um completo contrassenso, tanto político como financeiro. 

Não bastasse isso, toda a direção da empresa, que passa a administradora dos hospitais, é nomeada pelo Presidente da República, ou seja, o processo de controle dos HUs sai completamente da mão das universidades. Apenas o superintendente local pode ser indicado pela universidade, embora toda a lógica de gerenciamento venha de Brasília. “A empresa é pública, não haverá privatização de leitos”, insiste o diretor do HU da UFSC, Carlos Alberto, o Paraná. Mas, essa é uma meia verdade. A empresa é de direito privado e tem sim condições de abrir leitos privados, se for de seu interesse. Quem poderá garantir que não haverá duas portas no HU? Se hoje o hospital catarinense atende 100% SUS – com quase 250 mil procedimentos por ano – nenhuma garantia há de que a lógica privada não vá se infiltrando gradativamente, sempre amparada no mantra: “não há outra alternativa”.  As alternativas existem, apenas não há vontade política para levá-las adiante. 

Outro problema causado pela implantação dessa empresa é que o ensino, a pesquisa e a extensão também serão comandados por ela. E, se a lógica é privada e produtivista, que políticas haverão de ser implantadas? Que tipo de ensino e que pesquisas serão efetivadas? A partir de quais interesses? Os interesses privados.

A luta em santa Catarina

O diretor do HU fez um discurso emocional na reunião do CUn. Falou das dificuldades do hospital, do fechamento de uma clinica médica, que causou o não-atendimento de mais de 700 pessoas, da falta de equipamentos e da ameaça iminente do fechamento de outros leitos. O HU de Santa Catarina tem hoje apenas 214 leitos ativos, com 103 desativados, justamente por falta de pessoal. Segundo ele, para que tudo voltasse a funcionar como precisa, seria necessária a contratação de mais de mil trabalhadores. E isso não será feito se a UFSC não aderir à EBSERH.

Os problemas do HU são reais, mas a solução requerida é uma meia verdade também. O governo federal criou a empresa administradora de hospitais, mas não tornou a adesão obrigatória. A universidade pode aderir ou não. Se não é obrigatória, o governo precisa garantir verbas e contratações para os HUs que não aderirem. Se isso não acontece, há um problema aí, e deve ser enfrentado pelas autoridades. Estar submetido à EBSERH significa poder atuar com mais agilidade, fugindo das amarras da lei do serviço público, com a rapidez de uma empresa privada, mas sem qualquer controle sobre a vida do HU. Não estar vinculado significa caminhar mais lentamente, dentro das regras do serviço público, mas com o completo controle, seja no campo administrativo como no ensino na pesquisa e na extensão. E significa também que não  haverá brechas para a privatização. É o que está em jogo.

As falas das autoridades estão no campo emocional. “As pessoas estão morrendo”, “não há leitos”, “não há outra solução”, dizem,  apelando para o sentimento. Mas, é preciso ver muito mais do que a particularidade do HU. Se as pessoas estão morrendo certamente não é por conta de que uma clinica está fechada no HU ou de que 100 leitos estão desativados. As pessoas estão morrendo justamente porque a saúde é uma mercadoria cara demais para a maioria da população. 

Para se ter uma ideia, no estado de Santa Catarina, com 295 municípios e seis milhões de habitantes, existem 213 hospitais que estão vinculados ao SUS. Desse número, apenas 22 são públicos, um é universitário – portanto, hospital escola – e 190 são privados. Todos eles juntos oferecem 14.422 leitos pelo SUS, com uma distribuição muito desigual, uma vez que a maioria dos leitos está concentrada na grande Florianópolis e nas macrorregiões. Então, com base nesses números alguém realmente acredita que a adesão à EBSERH pode resolver o quadro de precariedade da saúde em Santa Catarina? Não, a adesão à empresa privada de administração do HU apenas coloca esse importante hospital-escola, que é uma referência estadual, no caminho da mercantilização da saúde. 

O debate no Conselho Universitário

O primeiro debate sobre a adesão à EBSERH aconteceu em meio a protestos dos estudantes, trabalhadores técnico-administrativos em greve, lideranças comunitárias e representantes do Fórum Catarinense em defesa do SUS. Eles já haviam se reunido na UFSC, no dia 30 de setembro, quando a discussão havia sido pautada e, em seguida, retirada. A tentativa de desmobilização não deu certo e nesse dia 07 lá estavam todos outra vez, com tambores e palavras de ordem. Como esse debate já vem sendo travado desde o ano de 2010, há muita clareza por parte de todos esses segmentos sobre o que significará a adesão do HU a uma empresa de direito privado.  Basta ver o que já acontece em Santa Catarina, com a entrega de hospitais para a administração das Organizações Sociais, que só têm aumentado o sofrimento de quem precisa de uma vaga pública.

Dentro do Conselho, os professores – que são maioria – mais uma vez impediram que o debate fosse aberto. A proposta era que a discussão se desse no auditório da reitoria, com a participação de todos, mas, colocado em votação o pedido dos técnicos e estudantes, foi rejeitado por 20 votos a 14. A partir daí foi apresentado o relatório sobre a situação do HU feito por uma comissão eleita no CUn, e também uma série de ponderações sobre as consequências da adesão a empresa de administração de hospitais. Aberto o debate, o que se viu – a exceção dos representantes dos técnicos e parte dos estudantes – foi o completo desconhecimento do tema por parte dos conselheiros. Alguns chegaram a dizer que toda a discussão feita era ideológica e que não havia dados concretos para decidir. 

Esse desconhecimento fortaleceu a proposta da realização de debates por toda a universidade, centro por centro, para que todos possam ser esclarecidos sobre as diferentes posições. Mas, mesmo aí há divergências. Há os que defendem a rapidez no processo, com a realização de poucos debates, e há a proposta de debates por centro de ensino, nos três turnos. Esse será o novo embate da próxima reunião. O professor Paraná, diretor do HU, insiste numa solução imediata, um quê fazer urgente que dê conta da falta de pessoal. “Os que são contra a EBSERH não têm solução”, insistiu.

A bancada dos trabalhadores técnico-administrativos em educação apresentou a solução: “A universidade é uma instituição que tem muita força no estado. Então, a reitora, o diretor do HU e os demais dirigentes do hospital precisam fazer a luta política. Articular o apoio de vereadores e prefeitos de todos os municípios que utilizam o HU dentro da lógica da ambulancioterapia, enviando pacientes todos os dias para esse hospital. Articular o apoio dos deputados estaduais, federais e fazer uma grande pressão em Brasília exigindo os recursos necessários. Essa administração é boa em aplicar a ´mão-dura` sobre os trabalhadores em greve, mas não é capaz de ser dura com o governo federal. É preciso que a UFSC use sua força e traga os recursos, mas isso significa trabalho e vontade política. Se a administração fizer isso, nós estaremos juntos nessa luta”. 

Para os trabalhadores, a entrada de uma empresa de administração externa dentro do HU, e com uma lógica privada, não terá influência apenas na vida de quem utiliza o HU. Ela se espraia para os seis milhões de catarinenses que serão atendidos por médicos formados num espaço em que a saúde será vista como um produto e o doente como um cliente em potencial. A saúde é um direito e a doença não pode estar submetida a padrões de “produtividade”.


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