segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Isaltina



Rememorando o passado

1894. Uruguaiana. Primeira e única cidade do Rio Grande criada pela revolução farroupilha. Fronteira com Argentina e Uruguai, espaço de amplos horizontes, reduto de gente acostumada às duras lides do campo. Numa de suas ruas, perto do rio, viviam Isaltina e José Antônio, com seus seis filhos. Isaltina era “pelo duro”, mulher nascida na terra, possivelmente com sangue índio. Casara porque era assim que as coisas eram. Mas, o marido revelava-se um homem de gênio ruim, e ela não suportava mais. Não era mulher de aguentar desaforo. Tinha fogo nas ventas e ternura no olhar. Haveria de fazer bastar. 

Assim, decidida a não mais aturar a violência e a ruindade, um dia ela fez assomar a valentia que tinha guardado e mandou o marido embora de casa. Ele a mirou, espantado. Não a reconhecia. Mas aquela faísca nos olhos dizia que o melhor era ele se arrancar. Na pequena cidade, uma mulher descasada não seria bem vista, mas Isaltina não se importou. Ela daria conta. Não precisava de homem para se garantir. Juntou as poucas tralhas num balaio de vime, segurou a fieira de crianças e marchou para  a casa da mãe. Ela iria cuidar dos filhos da forma que pudesse. 

Cabeça erguida e peito cerrado ela se mudou para os fundos da casa dos pais, onde se aninhou com a gurizada. Nunca reclamou da vida e logo começou a costurar para fora, buscando assim o sustento dos bacorinhos. No começo a olhavam de revés, mas, depois, foram acostumando com a “separada”. E ela trabalhava dia e noite, batendo os pés na rampa que fazia a velha máquina funcionar. Difícil era o dia que alguém a encontrava cabisbaixa ou com ares de tristeza. Sempre com um riso nos lábios, ela cantava milongas em castelhano. Criou todos os filhos, saudáveis e trabalhadores. Um deles veio a ser meu avô. 

Soube dessa linda história nesse último natal, quando a casa de meu pai foi palco de uma “roda dos anciãos”. Minhas tias Wilma e Teresa, meu pai e minha tia Dalva jogavam conversa fora na mesa da cozinha, falando de quando eram crianças, lá pelo início do século. E eu, que amo histórias, ia puxando o fio das lembranças, para conhecer as origens dos meus ancestrais. Penso que cada um deles é parte daquilo que faz a gente ser quem é. Foi assim, nessas conversas, que também descobri meu sangue charrua, originário de uma trisavó que apareceu em Itaqui fugida da batalha de Salsipuedes, na qual os Charrua foram traídos e praticamente exterminados. 

Por isso, gosto de vivenciar esse encontro com os mais velhos, para sondar o passado longínquo, me buscar. E então, de inopino, me aparece essa Isaltina, a qual imagino com os cabelos negros, compridos, os olhos de jabuticaba, o corpo franzino, mas teso.  Uma mulher inusitada, naqueles dias, e num lugar tão conservador como a então pequena cidade de Uruguaiana, nos confins do nada.  Essa Isaltina Silva Tavares que ousou dizer basta a um homem ruim e trilhou outro caminho, segurando ela mesma os tentos de sua existência. Nenhuma concessão. 

Tomada de emoção por essa desconhecida bisavó, típica mulher aguerrida dos descampados orientais, eu agora a mantenho no altar dos meus afetos. Tal qual ela, também tenho o costume de trabalhar cantando e me bateu a louca esperança de ter herdado dela, bem mais do que isso. Agora, quando sopra o vento, gosto de ir para a varanda, a chimarrear com sua lembrança. Isaltina, a mulher dos olhos de fogo, pequenina e valente. E sinto que ela se achega e me sopra ao ouvido as canções castelhanas... “desde la banda oriental, se viene el minuano, fuerte, fuerte, fuerte...”


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