quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Seres do Bem - retratos de viandantes


Este é um trabalho único. Fala das gentes que caminham pelo país, pela América grande, Latina, pelo mundo. Fala de pessoas que decidiram dizer não a ciranda capitalista, que voltam as costas para o mercado, para a competição, o egoísmo. São homens e mulheres que vivem uma vida próxima da natureza, que escolheram proteger o planeta, amar o próximo e o distante, com-partilhar, com-viver na harmonia e na cooperação. Um povo sobre o qual pesa o preconceito.

Vistos como loucos, hippies, marginais, através das lentes do fotógrafo Ricardo Casarini Muzy adquirem outra forma. Aparecem aqui imortalizados em instantes de perpétua beleza: o da partilha amorosa com todos os seres viventes, em cenas do cotidiano dos encontros que realizam para trocar experiências e saberes. O trabalho de Ricardo, que projeta em preto e branco a vida dos viandantes já é, em si, uma escolha do caminho do próprio fotógrafo. Ele poderia ter preferido retratar a vida que se faz em salas acarpetadas, nas estradas asfaltadas, nas paisagens turísticas. Mas não, ele mesmo um homem de caminhos vicinais, decidiu percorrer a vida que viceja às margens, que anda pelos caminhos de terra, que se mostra nas veias internas do grande Brasil.

O livro Seres do Bem diz dessas escolhas. É um memorial poético que se faz na imagem e nos pequenos textos, retratando a prática de vida de homens e mulheres que decidiram viver já, agora, no presente, a ideia de um tempo solidário e amoroso. Cenas do Encontro Nacional de Comunidades Alternativas, no meio da floresta amazônica. Imagens do Rainbow, encontro de caminhantes de todo o mundo, no interior da Bahia, e do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Momentos rituais de trocas e de comunhão. Uma vida que muita gente não conhece. Uma opção, uma decisão sem volta. Agora cabe a você, conhecer, saber, respeitar e, quem sabe, partilhar.


Seres do Bem, editado em 2004, é um poema de amor à vida, ao planeta, aos seres viventes. É um presente, uma bênção. Um olhar generoso sobre os viandantes, os que semeiam, a despeito de todos os horrores do mundo capitalista, sementes de paz e de amor. Sentimento tão antigos quanto a própria vida, tão esquecidos, mas que revivem em cada cena cristalizada por Ricardo.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Sul da ilha convoca Audiência Pública e define rumos da luta pelo Plano Diretor






Fotos: Rubens Lopes


As comunidades do sul da ilha deram uma lição de participação ativa na vida da cidade nessa segunda-feira, dia 9. Por auto-convocação dos núcleos distritais do Campeche e Pântano do Sul, os moradores lotaram as dependências do Clube Catalina, no Campeche, em uma Audiência Pública, para conhecerem as mudanças produzidas pela votação atropelada da Câmara de Vereadores sobre o Plano Diretor. Essa votação, feita em bloco, de quase 700 emendas produzidas pela prefeitura e por vereadores completamente descolados dos debates do plano participativo, mudaram de forma radical a proposta que foi construída coletivamente nas reuniões realizadas nos 13 distritos da cidade. Com as emendas, a cidade fica entregue a especulação imobiliária, a serviço do grande capital, sem proteção contra a destruição do ambiente e com a sistemática desvalorização dos imóveis, afinal, em pouco tempo, o que hoje é beleza virará uma selva de pedra. 

A audiência começou as sete horas da noite, com a comunidade fazendo fila para assinar as listas e votar. Em pouco tempo, o salão estava lotado, mostrando que as pessoas estão preocupadas com o destino do município e dispostas a lutar pelo modelo de cidade na qual querem viver. O representante do núcleo do Pântano do Sul, Gert Shinke, abriu com um resumo de todo o processo do Plano Diretor Participativo, mostrando as idas e vindas da prefeitura e as conquistas do movimento no sentido de garantir cada vez mais participação. 

Depois, Janice Tirelli, do Campeche, contou sobre a história de luta da comunidade, que começou em 1989, com a histórica Carta do Campeche, que detonava o início de uma luta incansável por um plano diretor construído pelas gentes, plano esse que foi finalizado e entregue na Câmara de Vereadores no ano de 2000. "Nós fomos pioneiros nessa batalha por uma cidade boa de morar, planejada e protegida". 

Na sequência, Ataíde Silva, do Campeche, explicou o que muda no bairro com as emendas feitas por vereadores que não respeitaram as decisões da comunidade, tais como Lela, Erádio, Gui Pereira e Sandrini, que circulam pela região. Segundo Ataíde, se aprovadas essas emendas que privilegiam o capital, está aberta a ocupação de boa parte do Morro do Lampião e da restinga que protege o bairro da ação do mar. Também estão planejadas grandes vias que cortam o bairro e demandam desapropriações, enquanto que a proposta comunitária é de pequenas vias e ciclovias na beira do mar, para garantir a vida tranquila do bairro e a proteção da restinga. Segundo Ataíde, da forma como está conformado o plano, a proposta da prefeitura é elevar a população da cidade para quase 800 mil pessoas, sem considerar a capacidade energética, de água, saneamento e mobilidade. 

Em seguida, foi a vez de Gert Shinke explicar as mudanças que estão propostas para o Pântano do Sul, que seguem as mesmas diretrizes dadas para o Campeche. Ocupação das áreas verdes, construções de condomínios, vias rápidas. A ideia é encher cada vez mais o bairro, sem a devida estrutura. Na plenária, as pessoas ouviam estupefatas as propostas que foram aprovadas e exigiam o nome completo de cada vereador que foi responsável por isso. Foi frisado que apenas três vereadores votaram contra as propostas definidas em bloco pela Câmara: Lino Peres, Afrânio Boppré e Pedrão. 

Ao final, as comunidades reunidas na Audiência Pública decidiram pela confecção e entrega de um documento ao prefeito municipal, aos vereadores e ao Ministério Público, exigindo o veto de todas as emendas que se contrapõem ao plano diretor participativo construído pela população. Também definiram que será articulada uma grande manifestação para o dia 30 de dezembro, dia marcado para a segunda votação do Plano na Câmara de Vereadores. Estrategicamente no apagar das luzes do ano, quando boa parte das gentes está viajando ou envolvida nos festejos de natal e ano novo. Ainda assim, houve o compromisso de todos em participar e levar mais gente para a manifestação.

Outra proposta aprovada foi a de se fazer uma ampla divulgação dos nomes de todos os vereadores que votaram no primeiro turno e que vierem a votar no segundo turno contra o plano elaborado pelas comunidades, ressaltando que, no primeiro turno de votação na Câmara, apenas três vereadores (Lino Peres, Pedrão e Afrânio), foram favoráveis ao que as comunidades decidiram.

A noite chuvosa terminou animada, com as comunidades do sul da ilha dispostas a aprofundar ainda mais a luta pela cidade que decidiram construir.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Canasvieiras quer expulsar mendigos


foto: Natália Cancian - Folhapress

Buscando as raízes da palavra mendigo, diz-se que vem do indo-europeu  ‘men-’ (pensar) e ‘dhe-’ (por, colocar), mais o verbo latino ‘facio’ (fazer), no qual o prefixo  ‘de-’ significa carecer (de-fecto). Vem daí também a origem do significado real que foi dado a palavra. Nos tempos muito antigos, mendigo era aquele que carecia de algumas funções mentais, o louco, ou ainda os que tinham alguma deficiência física. Sem que ninguém quisesse arcar com eles, viviam como caminhantes, esperando pela compaixão das gentes.  

Nas sociedades antigas, como na Grécia, por exemplo, havia aqueles que decidiam por vontade própria, viver na rua, daquilo que encontrassem. Era os cínicos. E já naquele tempo eram bastante criticados por isso. Outros, como Francisco de Assis, chegaram a fundar ordens religiosas, compostas por medicantes. Viver de esmolas para dedicar mais tempo as coisas espirituais. Também, no seu tempo, eram rechaçados, chamados de loucos, apartados da vida social. Só mais tarde Francisco virou santo mas, quando vivo era um pária. Seria expulso da praia de Florianópolis se aqui vivesse.

Hoje, os mendigos já não são só aqueles que tem deficiência , ou cínicos, ou religiosos. São os que não conseguem permanecer dentro da bolha de “consumo” capitalista. Assim, os empobrecidos, os que não tem trabalho, os abandonados, os que caíram em algum vício, os desgraçados, os excluídos, os que não conseguem ganhar o pão do dia, são os que vivem nas ruas, esperando a compaixão das gentes.

Mas, no mundo coloridos do capitalismo selvagem não há espaço para compaixão. Aquele que não é igual só consegue fomentar o medo. Assim, os que, por algum motivo, conseguem se manter na bolha da vida “normal”, que é ter um emprego, um pequeno negócio, uma casa para morar, passam a olhar com desconfiança os que não tem. Sentem medo, nunca compaixão. E, para purgar o sentimento de medo, atacam. Preferem tirar do alcance das vistas aqueles que, de alguma forma, são a denúncia viva de uma sociedade falida.

Os gregos, que são a base da cultura ocidental já diziam: o ser é, o não-ser não é. Ou seja. Só existe aquele que é igual. O diferente, não-é, logo, deve ser exterminado. Foi essa lógica que sustentou a matança dos indígenas no chamado “novo mundo”, que permitiu a escravidão dos negros, e que vem sustentando o extermínio de todos aqueles que não estão enquadrados nos cânones da “normalidade” social. Não é sem razão que um morador de rua tenha sido condenado a cinco anos de prisão por estar portando pinho sol e água sanitária num dia de protesto no Rio de Janeiro, ou que o pedreiro Amarildo tenha sido barbaramente assassinado numa favela carioca. Outros tantos exemplos poderíamos colar aqui: o desordeiro, o black bloc, o grevista, o pichador, o crítico. É diferente? Crucifiquem-no!

Por isso não é de surpreender a passeata feita no bairro de Canasvieiras, em Florianópolis, pedindo a expulsão dos mendigos e dos viandantes da praia. Comunidade praieira, turística, já há muitos anos virou o destino preferido da classe média alta argentina e brasileira. Ali abundam os hotéis, as propriedades protegidas e os negócios medianos. Ou seja, reduto da pequena burguesia, sempre tão cruel, tentando escalar a montanha da riqueza, custe o que custar. A essa gente, tão afeita em subir no contexto social, em acumular riquezas, as criaturas mal-vestidas, sem trabalho e, muita vezes drogadas ou alcoolizadas, são muito mais do que uma ameaça. Elas acabam sendo uma espécie de espelho às avessas. O horror do qual todos querem escapar. Por isso reagem tão mal. Alguns desses seres podem sim ser bandidos, ou ladrões, ou monstros, mas a maioria é formada por gente que, por algum motivo, não consegue penetrar na roda do mundo normótico. Ou seja, criaturas iguais a nós, só que desprovidas dos meios para ganhar a vida. Daí que deambulam pela cidade, esperando a compaixão daqueles que são seus iguais, humanos. Mas, por detrás das janelas, os olhos assustados que observam os viandantes não conseguem os ver como iguais, ao contrário, são os não-seres. Então, o grito: expulsem, crucifiquem!

Enrique Dussel, criador da filosofia da libertação fez um exercício bem simples usando a velha máxima grega “o ser é, o não-ser não-é”  que nos governa. Para que a gente se liberte desse axioma racista e discriminatório há que caminhar a partir de outro. E ele o inventou. Disse: “o ser é, o não-ser é real”.  E isso muda tudo. Se aquele que não é igual a mim é real, significa que eu não posso simplesmente dizer: matem-no, crucifiquem-no! Tenho de enfrentar essa diferença, olhar nos olhos, compreender. A partir daí outras práticas humanas podem ser possíveis.

Esse é um trabalho gigante que temos de cumprir. Mudar os axiomas, transformar a filosofia, destruir todo o edifício cultural que perdura por mais de dois mil anos. Não é coisa fácil. Mas, o fato de não ser fácil não significa que não possa acontecer.  Nesse sentido, talvez o grande trabalho que precisa se cumprir é o de alfabetizar a pequena burguesia de Canasvieiras sobre isso. Mostrar que os mendigos não são necessariamente um perigo. São pessoas que precisam ser compreendidas no seu contexto. Muito mais perigoso por ser o traficante bem vestido, o playboy estuprador ou o milionário assassino que se hospeda nos hotéis de luxo da praia e tem muito dinheiro no bolso. Mas, que, às vezes, por parecer igual, passa batido.

A sanha raivosa contra o pobre não é coisa de hoje. Parece ser “normal” bater no que está no chão. É mais fácil “malhar o judas” do que enfrentar a dura verdade que o velho Marx já apontava: no capitalismo, para que um viva outro tem de morrer. Os poucos “manifestantes” que saíram pelas ruas de  de Canasvieiras querem seguir pela via mais curta. Destruir o que lhes dá medo. Precisam saber que não adianta. O sistema ao qual seguem e no qual querem ascender sempre vai produzir mais e mais excluídos. Logo, esse,  serão um exército. Quem sabe, aí, tudo mude! …