terça-feira, 26 de março de 2013

No Sergipe, ficção dá processo


Jornalista se torna réu em ação criminal por escrever crônica ficcional sobre coronelismo

Já entrou para a história do Judiciário em Sergipe a decisão inédita da juíza Brígida Declerc, do Juizado Especial Criminal em Aracaju, de receber a denúncia do Ministério Público Estadual, contra o jornalista Cristian Góes, 42, por ele ter escrito em seu blog uma crônica ficcional que trata do coronelismo.

A magistrada reconhece que o artigo, literário e escrito em primeira pessoa, não tem qualquer indicação de locais, datas, cargos públicos e não cita ninguém, mas mesmo assim a juíza acatou a denúncia do MP, que por sua vez entende que a crônica quando fala de um “coronel” estaria o jornalista a se referir ao governador de Sergipe, Marcelo Déda (PT). Para o MP quando o artigo literário cita uma vez a expressão “jagunço das leis” estaria fazendo referência objetiva ao desembargador do Tribunal de Justiça, Edson Ulisses, cunhado do governador.

A última audiência do processo criminal movido pelo desembargador contra o jornalista ocorreu na sexta-feira, 22, na sede do Tribunal de Justiça de Sergipe, onde o irmão do governador Marcelo Déda, o desembargador Cláudio Déda é o presidente, e o seu cunhado, o desembargador Edson Ulisses é o vice-presidente, este último escolhido e nomeado pelo governador. Atendendo ao pedido do desembargador Edson Ulisses, o Ministério Público, ainda na primeira audiência de conciliação já denunciou criminalmente o jornalista pelo crime de ter escrito a crônica ficcional. Por coincidência, dias depois da denúncia, a promotora de Justiça Allana Costa, que era substituta e trabalhava no interior de Sergipe, foi premiada com a promoção para a capital, em cargo de coordenadoria.

Na audiência da última sexta-feira, 22, vários representantes de movimentos sociais que lutam pela liberdade de expressão e até familiares do jornalista foram impedidos de participar da audiência. A segurança da Polícia Militar dentro do tribunal foi reforçada. Todos os lugares da sala de audiência foram tomados desde cedo por funcionários com cargos comissionados e terceirizados do Tribunal de Justiça. A audiência durou mais de quatro horas e a juíza Brígida Declerc proibiu qualquer registro fotográfico e sonoro.

As ações - O desembargador Edson Ulisses, cunhado do governador Marcelo Déda, alegou que a crônica literária “Eu, o coronel em mim”, escrita pelo jornalista Cristian Góes em maio de 2012 em seu blog acata diretamente o governador de Sergipe e a ele, por consequência. Por isso, ingressou com duas ações judiciais. Na criminal, o desembargador pede a prisão de quatro an os do jornalista. Na cível, pede que o juiz estabeleça um valor de indenização por danos morais e já estipula os honorários dos seus advogados em R$ 25 mil. Na audiência da última sexta-feira, o desembargador foi ouvido pela juíza e disse se referindo ao jornalista e a crônica literária: “Todo mundo sabe que ele escreveu contra o governador e contra mim. Não tem nomes e nem precisa, mas todo mundo sabe que o texto ataca Déda e a mim”.

O advogado Antônio Rodrigo, que faz a defesa do jornalista, chegou a apresentar uma peça jurídica que é uma decisão do próprio desembargador Edson Ulisses. Em 13 de março do ano passado, na Apelação Criminal 1506, da 9ª Vara Criminal, Edson Ulisses decide um caso parecido alegando que “é imprescindível a demonstração da intenção do querelado de ofender a imagem ou a honra objetiva do querelante”. Para o advogado Antônio Rodrigo é completamente impossível na crônica literária assinada por Cristian Góes encontrar a mínima prova da intenção de ofender a honra de ninguém. “Esse alguém não existe no texto. É fato. É concreto. Não é uma questão de interpretação. Falta, portanto, justa causa para que a ação se processe”, disse o advogado.

Também na audiência foram ouvidas duas testemunhas de acusação. Uma delas foi o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, Clóvis Barbosa, que foi secretário do governador e foi nomeado por Marcelo Déda para o cargo de conselheiro. Ele disse que o jornalista é “porta-voz de um grupo político aliado do governador, mas que fez críticas ao governador. O texto foi contra o governador e atacou o desembargador Edson Ulisses diretamente, aliás, acatou todo o Judiciário sergipano. Eu aconselhei a ele que tinha que processar esse rapaz”, afirmou Clóvis. Questionado pelo advogado Antônio Rodrigo sobre onde es taria na crônica literária alguma referência concreta ao governador e ao desembargador e qual o grupo político que o jornalista é porta-voz, Clóvis Barbosa disse: “todo texto é um ataque a Marcelo Déda. Não fala nomes, mas todo mundo sabe que é. Sobre o grupo político tudo mundo sabe qual é”.

A juíza negou - O advogado Antônio Rodrigo indicou como testemunhas de defesa do jornalista o governador Marcelo Déda, mas a juíza Brígida Declerc negou qualquer possibilidade de ouvir o governador porque, segundo ela, Déda não é “parte” no processo. A juíza também indeferiu uma série de perguntas do advogado ao desembargador Edson Ulisses e as suas testemunhas por conta das respostas vazias, como “todo mundo sabe”. A magistrada também não permitiu que fosse relacionado como testemunha de defesa do jornalista o representante da organização Repórteres Sem Fronteiras, Beoit Hervieu. Serão ouvidos por carta precatória o jornalista Paulo Henrique Amorim e o jornalista Celso Schroder, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas.

A crônica literária “Eu, o coronel em mim” é um texto em estilo de confissão de um coronel imaginário dos tempos de escravidão que se vê chocado com o momento democrático. Não há citação de nomes, locais, datas, cargos públicos. “É impossível que qualquer pessoa concreta possa se reconhecer no texto. Para se condenar é preciso ter agressor e vítima devidamente identificados. Nesse caso não há nada. Se esse caso prosperar no Judiciário em Sergipe será algo inédito e de repercussões muito graves ao Estado Democrático de Direito. É um ataque violento à liberdade de expressão. Ter liberdade de expressão não é ter liberdade para elogiar”, disse o advogado Antônio Rodrigo.

A presidente do Sindicato dos Jornalistas, Caroline Rejane, lamenta que a liberdade de expressão esteja sendo gravemente atacada pelo poder Judiciário em Sergipe. “Nós estamos nos solidarizando ao companheiro Cristian Góes, mas não só por ele, por todos os profissionais da área de Comunicação que estão seriamente ameaçados”, disse. A próxima audiência está marcada para o dia 19 de abril.

Veja a íntegra da crônica que causou os processos:

Eu, o coronel em mim

Está cada vez mais difícil manter uma aparência de que sou um homem democrático. Não sou assim, e, no fundo, todos vocês sabem disso. Eu mando e desmando. Faço e desfaço. Tudo de acordo com minha vontade. Não admito ser contrariado no meu querer. Sou inteligente, autoritário e vingativo. E daí?
No entanto, por conta de uma democracia de fachada, sou obrigado a manter também uma fachada do que não sou. Não suporto cheiro de povo, reivindicações e nem conversa de direitos. Por isso, agora, vocês estão sabendo o porquê apareço na mídia, às vezes, com cara meio enfezada: é essa tal obrigação de parecer democrático.

Minha fazenda cresceu demais. Deixou os limites da capital e ganhou o estado. Chegou muita gente e o controle fica mais difícil. Por isso, preciso manter minha autoridade. Sou eu quem tem o dinheiro, apesar de alguns pensarem que o dinheiro é público. Sou eu o patrão maior. Sou eu quem nomeia, quem demite. Sou eu quem contrata bajuladores, capangas, serviçais de todos os níveis e bobos da corte para todos os gostos.
Apesar desse poder divino sou obrigado a me submeter à eleições, um absurdo. Mas é outra fachada. Com tanto poder, com tanto dinheiro, com a mídia em minhas mãos e com meia dúzia de palavras modernas e bem arranjadas sobre democracia, não tem para ninguém. É só esperar o dia e esse povo todo contente e feliz vota em mim. Vota em que eu mando.

Ô povo ignorante! Dia desses fui contrariado porque alguns fizeram greve e invadiram uma parte da cozinha de uma das Casas Grande. Dizem que greve faz parte da democracia e eu teria que aceitar. Aceitar coisa nenhuma. Chamei um jagunço das leis, não por coincidência marido de minha irmã, e dei um pé na bunda desse povo.

Na polícia, mandei os cabras tirar de circulação pobres, pretos e gente que fala demais em direitos. Só quem tem direito sou eu. Então, é para apertar mais. É na chibata. Pode matar que eu garanto. O povo gosta. Na educação, quanto pior melhor. Para quê povo sabido? Na saúde...se morrer “é porque Deus quis”.

Às vezes sinto que alguns poucos escravos livres até pensam em me contrariar. Uma afronta. Ameaçam, fazem meninice, mas o medo é maior. Logo esquecem a raiva e as chibatadas. No fundo, eles sabem que eu tenho o poder e que faço o quero. Tenho nas mãos a lei, a justiça, a polícia e um bando cada vez maior de puxa-sacos.

O coronel de outros tempos ainda mora em mim e está mais vivo que nunca. Esse ser coronel que sou e que sempre fui é alimentado por esse povo contente e feliz que festeja na senzala a minha necessária existência.

José Cristian Góes
29/05/2012 - 09:57

segunda-feira, 25 de março de 2013

Quando um amigo chamar, vá!


Ela tinha muitos amigos no facebook e inumeráveis seguidores no twitter. Por ali sempre rolavam conversas, risadas, compartilhamentos de textos e sentimentos. Mas havia a frieza de um espaço sem olhares quentes, sem abraços apertados, sem beijos, sem toques de mãos. E ela precisava disso. Talvez porque fosse de uma outra geração, de um outro mundo, desses nos quais as pessoas se olham e se afagam e se beijam e se encantam uma com a outra. Ela, então, tinha sede e fome de presenças, era o seu alimento e, sem isso, definhava. Achava até que se não tivesse, vez em quando, o contato real com aqueles a quem amava, morreria.
Então inventou um encontro. Precisava dele para não sucumbir de vazios humanos. Comprou frutas, sucos, vinhos, pãezinhos e patês. Tal qual Babette planejando a festa, preparou delícias para dividir com aqueles os quais chama de amigos. Comer junto é comunhão, coisa sagrada, desperta o que há de melhor em cada ser. Também, feito a raposa, desde a manhã seu coração batia ligeiro esperando a hora do abraço que lhe devolveria a vida. Era o primeiro dia do outono, a mais bonita das estações, e chovia uma chuva forte, lavando a cidade e preparando a terra para a colheita. O universo conspirava para que a noite fosse de profundas alegrias.
Quando a hora chegou, tudo estava pronto. A mesa posta, a música escolhida, o vinho aberto. Ela sentou-se na varanda, a esperar. A chuva seguia, renitente, mas, pensou: “ninguém é de açúcar”. E quem ousaria não dar ouvidos ao chamado de um amigo? Sorriu e ficou a imaginar cada um dos rostinhos amados que chegariam, afogueados, guarda-chuvas abertos, fugindo do aguaceiro, também ansiosos pelo encontro, o abraço, o toque.
O tempo foi fugindo do relógio, a chuva seguindo seu curso, as frutas murchando e ninguém apareceu. A mulher deixou-se ficar à varanda, com todos os copos de vinho no chão. Na cidade molhada nenhum amigo atendeu ao chamado. Não haveria abraços, nem beijos, nem toques de mãos. Então, dos olhos, começaram a escorrer pequenas gotas de lágrimas, que foram crescendo, crescendo, crescendo, até formarem uma imensa poça de água. No dia seguinte, quando a procuraram, tudo o que puderam encontrar foi aquela estranha poça ao lado da cadeira que balançava sozinha no alpendre. A mulher nunca mais foi vista. Seu último post no facebook foi um insistente chamado para a festa.
Sua caixa de emails, aberta no dia seguinte, estava cheia de mensagens dos amigos, dizendo que tinham coisas importantes a fazer. Não seria possível o encontro. E a vida seguiu no facebook, com milhares de pessoas “compartilhando” coisas.