domingo, 10 de novembro de 2013

Jornalismo dissecado, para outra práxis!



O trabalho de Miriam Santini de Abreu no livro “Quando a palavra sustenta a farsa – o discurso jornalístico do desenvolvimento sustentável” é uma ousadia que se espraia em múltiplas direções, tal qual o discurso que, de forma crítica, ela busca refletir. Ousadia polissêmica. Gesto que se faz desde um lugar específico, singular, o Brasil, parte que se nega de uma América Latina que ainda não conhece seu próprio rosto. E é deste espaço que Miriam fala como jornalista, construtora de mundos, com o frágil/forte tijolo da palavra. E fala ainda como um ser que vive e tem consciência de seu espaço geográfico, que percebe a natureza não como uma inimiga a ser domada, e muito menos como um sacrário a ser preservado dos pés e mãos humanas.

A natureza com a qual conspira Miriam no seu mapa da farsa não é uma abstração romântica. Ela é o espaço geográfico com todas as suas conformações: pedras, matas, águas, montanhas, animais e homens. Uma simbiose que deve ser vista assim, na sua totalidade, historicidade e na sua concretude social. Com a faca afiada da crítica que desvela aquilo que se apresenta unicamente como aparência, a autora vai ajudando o leitor a decifrar a intrincada rede de ilusões fabricada pelo dito jornalismo ambiental que, na maioria de suas expressões, age como uma igreja, incensando o chamado desenvolvimento sustentável, usando a tática de dividir a paisagem entre o meio e o homem, como se isso fosse possível. Além disso, Miriam mostra sem disfarces a fantasiosa ideia capitalista que torna “responsáveis sociais” aqueles que tomam o ambiente como mercadoria e o destroem em nome do lucro, mascarando essa degradação com o que chamam de redução de danos.

Assim, nos veículos considerados pelo trabalho em questão, pode-se observar que o jornalismo se faz não mais como uma crítica análise do mundo da vida, mas sim como uma máquina de propaganda de um sistema insaciável que esconde sua essência na chamada “sustentabilidade”, conceito no mais das vezes falseado, porque não apresenta a historicidade do fenômeno e muito menos a perspectiva do lugar. Por exemplo, aquilo que aparece como sustentável na Europa, não tem o menor sentido na África ou na Bolívia.

Noam Chomsky tem um trabalho exaustivo sobre como, nos Estados Unidos, o jornalismo funciona como propaganda de um modo de vida em que não está em questão a vida das maiorias e sim, os interesses específicos de governo e empresas específicas. Mas, essa crítica serve muito bem ao jornalismo praticado no Brasil, particularmente o ambiental, tal qual mostra a análise feita por Miriam, até porque uma das características do modo de fazer jornalismo neste país segue a mesma cultura colonizada de quase todas as outras áreas do saber.

Pois neste livro incomodativo Miriam estraçalha com todos os véus. Aguda analista do seu tempo, ela pega na jugular e faz sangrar a farsa sem qualquer pitada de dó. Cada reportagem dissecada pelo diagnóstico da pesquisa grita conceitos de uma gente (jornalista) que parece ignorar as contradições do desenvolvimento capitalista dependente, o qual não permite erro de análise: nenhum mundo contaminado por esse modo de produção pode ser sustentável. Ou ainda, o que é pior, é praticado por seres que se fizeram cortesãos do sistema e, portanto, impedidos – por censura interna – de expressar as contradições. Assim, defender a ideia de desenvolvimento sustentável só pode ser possível a estes que realmente estão convencidos de que o sistema que obriga a morte de um para que o outro viva é mesmo melhor e legítimo. E aí, o que faz a autora é interpelar cada um que se disponha a ler esse trabalho, na mesma direção que Jacione Almeida em uma das citações: “Trata-se de sustentar o quê? `Futuro comum´ de quem  e para quem?” Esse é ponto! Certamente que esta sustentabilidade está dirigida a uma classe em particular, e não são às maiorias.

É justamente por isso que o trabalho da autora é perturbador. Ela explicita, corajosamente, essa questão da posição do sujeito jornalista, que nunca é neutro ou imparcial. Ao narrar, o autor se desvenda a si próprio e qualquer tentativa de ignorar isso é apostar na impostura. E é por acreditar nisso que Miriam questiona. Que tipo de pessoas são essas, os jornalistas que narram a vida nas páginas dos jornais?  Ingênuos, ignorantes ou os crentes no capital? Que tipo de profissionais são esses que dão voz apenas ao poder, silenciando outras vozes que clamam à margem? Que tipo de jornalista é esse que só se dispõe a pisar as salas acarpetadas dos palácios e das grandes empresas, negando-se a mergulhar no mundo da vida, esse, real, dos excluídos da dignidade? Que jornalismo é esse que louva uma monstruosa ponte de cimento como algo que se semeia na paisagem, enquanto mostra os empobrecidos que ocupam áreas de preservação como a suja escória que deve ser varrida? Que prática é essa que faz da vítima o vilão?

As respostas saltam das páginas, sem que autora precise dizer. Tudo fica claro quando se percebe que o rei está nu. O jornalismo hegemônico é uma fábrica de ilusão, amparada na mais descarada publicidade, na qual a natureza perde a sua aura, vira fantasmagoria, se dilui na prateleira do grande mercado do capital. O modo capitalista de reprodução da vida se mostra no discurso dos jornais, impiedoso e simples, tornando difícil entender como as pessoas não se dão conta da sua vilania.

E é nessa articulação entre o espaço, a narrativa jornalística e o discurso que Miriam Santini de Abreu vai desfilando sua ousadia de jornalista que toma posição. Dialoga segura com a geografia de Milton Santos, esse intelectual brasileiro que também ousou e imprimiu um desenho humano no debate sobre o lugar e a natureza. Revive a teoria revolucionária de Adelmo Genro Filho, um pensador que conseguiu decifrar o segredo de um jornalismo que se expressa no singular, mas só se torna crítico quando articula e aspira ao universal. E, revela os sentidos do discurso a partir de Eni Orlandi, uma analista que se aventura para além do texto, revelando a polifonia e a ideologia que ele contém. Então, nesse entrecruzar de elementos inimagináveis, e depois de uma impiedosa análise dos textos do JB Ecológico e do AN Verde, a autora acaba revelando também um outro segredo, singelo, mas fundamental: o jornalismo não precisa ser esta fábrica de ilusões que aparece hegemônica, essa prática a-crítica e cortesã. O jornalismo carrega em si mesmo, como já anuncia Adelmo Genro Filho, a possibilidade de ser uma poderosa arma de desvendamento do real.

A ideia que fica é a de que, apesar de toda a máquina de propaganda na qual se transformou o jornalismo, o sujeito jornalista tem todas as condições de ser também aquele que tem consciência de que fala desde um lugar, e que esse lugar tem historicidade. Que o jornalista pode, no texto, fazer o trânsito entre o singular, particular e universal, apresentando toda a atmosfera do fato e não apenas a sua singularidade reificada, que empobrece, desinforma e deforma. Que o jornalista pode buscar outras vozes, as que clamam desde fora do centro do poder, e não apenas aquelas que se vendem como produtos. Ao evocar Marcos Faerman, um criador, um mago da palavra transformadora, sensível e revolucionário, Miriam desfaz qualquer possibilidade de frustração ou desencanto com essa feiticeira profissão. Pelo contrário, depois da verdade que se esparrama pelas páginas do livro, fica a certeza de que o jornalismo pode ser mudado. Não mais como uma grotesca farsa, mas como um discurso libertador, capaz de revelar o humano “sufocado em sua vontade de ser”.



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