segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Brasília soterrada no Sahara Brasiliae



Li o novo livro de Raimundo Caruso, Sahara Brasiliae, em pequenas doses. Devagar, como a própria narrativa, que avança e recua por uma cidade fantasma. A história fala da capital brasileira que, um belo dia, amanhece tomada pela areia, num calor escaldante. Nela, apenas alguns personagens vagueiam, ligados, mas sem nunca se encontrar. Tudo é silêncio e solidão. Calor, abafamento, angustia, sensação de abandono e caos. E, como a areia se move com o vento, a cidade vai se mostrando e desaparecendo, ao mesmo tempo, num movimento sem fim e vertiginoso. Os personagens, ficantes no inferno amarelo que se tornou Brasília, vão nos instigando. Uma tradutora, um ciclista, o narrador, o arcebispo, os políticos, um bibliófilo, um blogueiro, um arcebispo. São figuras estranhas e, ao mesmo tempo, tão reais e próximas que, por vezes, quase lhe reconhecemos as feições.

As andanças do narrador pela cidade deserta são descritas em narrativa vigorosa e dura. Hora lenta, ora ligeira. O texto nos envolve como se fora uma profusão de pequenas cenas, reais e visíveis. A gente consegue sentir a areia entrando pelos poros, os cheiros e, por vezes, quase desfalecer com o calor que emana da trama. O trecho em que o caminhante entra em um mercado, no qual as comidas todas estão apodrecendo com o calor sufocante, é de arrepiar. Produtos químicos, transgênicos, conservantes e toda a sorte de porcarias que se adicionam aos alimentos parecem adquirir vida e nos mostram todo o terror que, cotidianamente, essas coisas que comemos contêm, sem que nos demos conta. É talvez o momento mais impactante do livro. Uma podridão que nos arrasta, e que está dentro de nós.

Raimundo escreveu o livro antes das jornadas de luta do mês de junho, mas, a problemática política do país está completamente presente no romance, quase como se fosse um texto premonitório. A Brasilia ocupada pela areia ainda é a nossa confusa e desumana capital, com todas as suas belezas e contradições. O centro de uma política que tem uma opção de classe. E que não é a das gentes comuns.  Por isso, na trama, Caruso acrescenta, em relevo, dois escritores que deixaram sua marca na humanidade: Erasmo de Rotterdam e Thomas More. E, assim, entre a loucura do status quo e a utopia que nos move para a transformação, nós também vamos escalando as montanhas de areia, tentando respirar num ambiente que nos oprime para além do físico.

A narrativa de Raimundo Caruso ainda oferece outros subtextos. É também, por vezes, uma espécie de ode à palavra mesma, essa ferramenta de quem escreve. O autor e o narrador estão sempre a buscar uma, duas, três palavras que se dizem, ao mesmo tempo, sinônimas, reforçando sentidos e se mostrando quase autônomas, como de fato são. Outro subtexto é reverente amor de Caruso pelos livros. Um toque de Maupassant, Whitman, Somerset, Poe, Goethe e tantos outros que revelam  os dias e noites de infinitas leituras. Também não fica de fora a América Latina e as  novidadeiras realidades de lugares como a Bolívia, Venezuela, Equador que desvelam um autor ligado nos transformações do nosso continente.

Sahara Brasiliae é sufocante, estridente, instigante, intimista e revelador. De alguma forma condensa também a trajetória desse escritor que iniciou sua trilha de escriba no romance, passando depois pelo jornalismo. Como Caruso, o homem que caminha pela areia da cidade soterrada não está perdido no caos. Apesar do absurdo da realidade ele se move com confiança, seguro, sabendo onde buscar o que precisa ser visto. E, ainda que nenhum dos personagens se encontre ao longo da trama, o narrador consegue ligar essas vidas de tal forma que ao final a impressão que fica é de que ele encarna cada uma daquelas almas. O autor é a totalização de todos os personagens. Talvez seja por isso que quando a areia da cidade se esvai, tudo o que fica é a perplexidade daquele que, sendo muitos, nada mais tem a fazer do que seguir seu caminho, esgrimindo as palavras e construindo novos mundos. Diante do completamente inesperado, sobe no táxi, e recomeça. 

É como uma metáfora de nós mesmos. Dando combate à solidão, à realidade de um país em escombros, ao nosso próprio medo de estar soterrado e perdido no calor. A última página aparece como um vento fresco e, como o autor, não nos resta outra opção que fazer um sinal ao táxi, e seguir adiante, não sem estar com a alma em ebulição. Mas, ao que parece, esse é o destino da gente. Nunca paralisar diante do absurdo.

********************
Para encomendar o romance de Raimundo Caruso, faça o pedido pelo correio eletrônico: livro.sahara@gmail.com


Nenhum comentário: