segunda-feira, 22 de abril de 2013

Geografia da cultura em Florianópolis




A cidade de Florianópolis se vende como a capital do Mercosul, um espaço de belezas turísticas capaz de atrair os mais refinados gostos. Até aí não existem inverdades. De fato, a cidade é pura beleza, de uma natureza exuberante e uma cultura rica e original. Mas, ao longo dos últimos anos, tudo isso está esboroando. A beleza natural cede espaço para os prédios, condomínios e empreendimentos imobiliários de todo o tipo que estão apagando a beleza da costa. Das 42 praias que  só a ilha possui, pode-se contar numa mão aquelas que ainda não foram transformadas para dar lugar ao "progresso". Um certa insanidade porque os turistas que aportam na ilha querem ver a beleza das praias. Só que com a ocupação desenfreada e irregular, aos poucos a natureza vai dando lugar ao cimento e à loucura da vida urbana. Ou seja, transforma-se no contrário daquilo que os turistas, e os que buscam a cidade para viver, desejam.  

E, da mesma forma como a natureza vem sendo destruída, também a cultura está pagando o preço do crescimento da cidade. Com o inchaço das comunidades, muitas vezes de maioria forasteira, a cultura local vai desaparecendo. Nada contra os "de fora", mas, ao que parece, muitos dos que aportam na ilha preferem não se integrar aos ritmos culturais autóctones e, aos poucos, a riqueza da vida ilhoa vai se perdendo, com a priorização de eventos de caráter homogeneizado, representando a cultura "global" tais como os grandes shows musicais e festas ao estilo "jet-set".

Uma das construções culturais que pena para se firmar é o boi-de-mamão, brincadeira de danças e cantorias típicas da região de descendência açoriana. Poucos são os grupos que sobrevivem na cidade e raras as escolas que ainda se dedicam a ensinar a brincadeira e a construir os personagens. Mesma a festa do boi que a prefeitura realiza de tempos em tempos, não reverte em vivencias cotidianas locais, ficando apenas como um evento a mais no cartel turístico. O pão-por-deus, outra tradição cultural na ilha também já vai se perdendo nas brumas das memórias dos mais velhos. Os pequenos versinhos rimados, escritos em um coração de papel, oferecidos junto com um pão, vivem no cotidiano de poucos e também o seu caráter comunitário se esfuma, já que as comunidades cresceram e estão cheias de pessoas que não se importam com as velhas práticas locais. A renda de bilro ainda resiste na lagoa e em alguns outros espaços bem delimitados. Não se vê a juventude aprendendo a construir belezas com o batucar delicioso dos bilros de pau. Assim também acontece com a prática da olaria, hoje praticamente transformada em folclore, quase sem seguidores.  

A cultura para quem?

E se a cultura popular da ilha de Santa Catarina se arrasta em indigência e falta de apoio, também falta à população espaços de outras formas de cultura, para que possam se alimentar de belezas e reinventar as práticas comunitárias. Há alguns anos, a prefeitura criou um projeto bastante interessante chamado "Floripa Letrada", a partir do qual foram instalados espaços nos terminais de transporte urbano, para o empréstimo de livros. As pessoas, esperando o ônibus, podiam pegar livros e revistas e, inclusive, levar para casa. O projeto ainda existe, mas o cuidado com os livros oferecido é praticamente nenhum. O que se vê são depósitos de livros velhos, sem maiores critérios e sem uma preocupação real com a distribuição de obras de autores catarinenses, por exemplo. Na verdade, são livros que ninguém quer. Perde-se a chance de encantar as pessoas com boas obras.

No que diz respeito ao acesso aos equipamentos culturais que uma cidade deve ter, também a situação é sofrível. Os cinemas estão praticamente todos dentro dos "xopingues", cercados de tantas outras formas de sedução e com ingressos tão caros que é praticamente impeditivo para um trabalhador assistir a um bom filme.  Os teatros, excetuando o belo e velho TAC (Teatros Álvaro de Carvalho), que fica no centro da cidade, ficam completamente distantes da vida da maioria. O Centro Integrado de Cultura (CIC) sequer tem uma parada de ônibus na frente. Para chegar até lá, aos que não tem carro, é preciso pegar um ônibus que para na parte de trás e andar um bocado para entrar no local. Da mesma forma, por conta da falta de mobilidade na cidade, se uma pessoa  que mora num bairro do norte ou do sul decidir ver um filme no CIC, está frita. Com a sessão terminando perto das onze da noite, a pessoa corre o risco de não conseguir pegar um ônibus para chegar em casa.

O mesmo acontece com o Teatro Pedro Ivo, construído na sede do governo estadual que fica na SC 401. Uma pessoa ônibus-dependente não pode desfrutar dos eventos teatrais ou dos shows musicais. Certamente não chega em casa por falta de mobilidade. Assim, a geografia da cultura em Florianópolis está toda preparada para uma pequena parcela que pode se deslocar de carro e pode pagar caro para usufruir dos bens culturais.

Os eventos que acontecem no centro da cidade ou no mercado público são muito esporádicos e, por conta disso, não conseguem criar vínculo com as pessoas. A sede por cultura é grande e isso pode ser notado em momentos como o  do Festival Isnard de Azevedo, que leva o teatro para a rua, para os bairros, gratuitamente. As pessoas participam, gostam, se deixam ficar. Mas, isso só acontece uma vez ao ano, quase como um evento ritual. Não se vê, no cotidiano da cidade, o teatro pelas ruas. Até porque, como também não há uma política de incentivo à arte por parte do poder local, os artistas tampouco conseguem oferecer espetáculos á maioria da população . É um triste círculo vicioso que não encontra paradeiro. Os realizadores culturais precisam se virar nos 30 para conseguir montar uma peça, fazer um show, montar uma exposição. É tudo muito difícil. Para complicar, também não existe uma organização ativa dos artistas e gente da cultura. Cada um batalha por si e a força se esvai.

Algumas ações isoladas sempre acontecem nos bairros. Na região de Santo Antônio de Lisboa, o Baiacú de Alguém,  por exemplo, que era só um bloco de carnaval, hoje também se dedica a promover outras formas de cultura. Ou o Cine Dona Chica, no Campeche, que busca levar o cinema para a comunidade, bem como a discussão dos temas importantes da vida cultural do bairro. Há a ação da Banda da Lapa, no Ribeirão da Ilha e a quase heroica resistência de Valdir Agostinho, na Barra da Lagoa, a Barca dos Livros, na Lagoa, entre outras experiências semelhantes. Mas, são ações que estão sempre dependendo dos fluxos e refluxos dos financiamentos, patrocínios ou doações das comunidades. Não estão unificadas nem tampouco fazem parte de uma política clara de promoção cultural da cidade.

Assim, nessa geografia que privilegia os mais abastados e isola cada vez mais as práticas locais mais tradicionais, a cidade segue seu curso, enchendo-se de prédios, afogando-se no cimento, perdendo dia-a-dia a sua beleza natural e o patrimônio cultural de extrema riqueza. Não é sem razão que nas tardes de outono, quando baixa o vento sul, as pessoas  que ainda podem ouvir o chamado telúrico desse belo lugar,escutem a gritaria das bruxas, resistindo na pedra grande do Morro das Pedras. Elas embaraçam os cabelos das gentes e lhes sopram no ouvido  a verdade inabalável: se esquecermos nossas raízes, ficaremos à deriva no mar da vida. Ainda há tempo para a cidade, através das forças vivas que atuam politicamente nas lutas gerais, assumir a batalha pelo direito à cultura. Faz-se a luta por parques, pelo plano diretor, por mobilidade e tantas coisas da vida prosaica. Mas também é hora de brigar pela cultura, essa coisa aparentemente inefável e etérea, mas que, na sua concretude, torna as gentes sempre melhores do que são. Todos os seres precisam ter o direito de desfrutar dos bens culturais.

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