quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Quem tem medo da infelicidade?




Outro dia um amigo observou: "só tem gente feliz no facebook". Ele tem razão, é verdade. E isso acontece porque o nosso tempo impõe a felicidade a ferro e fogo. Qualquer turbação da alegria e já se começa a buscar alguma razão psíquica ou física para tanto. Proibido chorar, proibido sentir-se arrasado diante do sofrimento do outro. Eu lembro quando eu era jovenzinha que eu não me permitia gargalhar porque achava um desrespeito com as gentes que sofriam na África. Todos me chamavam de louca e foi só quando fiquei mais madura que entendi que apesar de todas as dores do mundo, a gente pode sim vivenciar momentos de alegria, e reaprendi a rir. Mas, ainda assim, vez ou outra me pego chorando no ônibus. Claro que não é só uma piedosa manifestação de pena. Os que sofrem não merecem nossa comiseração, como diz meu amado irmão. Choro porque me sinto infeliz,  mas luto com todas as unhas para mudar esse mundo. Não fico a fazer musculação de consciência. Sei que o pouco que fazemos não muda quase nada, mas gosto de saber que não estou parada no meio do rio da vida.

Por esses dias ando assim, em turbilhão. Me ardem os olhos, me oprime o peito, me acelera o coração. Sinto como se o chão se abrisse, embora alguma coisa muito perversa me mantivesse onde estou. Sem condições de sucumbir e tendo de enfrentar os terrores, sem chance de opção. A tristeza vem forte, como essa que bate no pôr-do-sol e temos a certeza absoluta da finitude.   Tenho falado pouco e meu riso não ecoa pelos corredores. As ideias andam embaralhadas, e tudo parece estar fora de ordem. O trabalho está parado - estamos em greve - mas a vida segue correndo lá fora. Há pressa, muita pressa e eu tropeço no nada que me oprime.

Penso no grande Nietzsche, para quem o sofrimento devia ser vivido até o toco. Descer até o fundo e, depois, irremediavelmente, subir. Mas entre uma coisa e outra, é viver o inferno. O mundo moderno tem opções. Uma dose de alprazolan, quem sabe. Mas, essas são baguinhas que só mascaram as verdadeiras causas da dor. E nos oferecem, felizes, na grande arena do dragão, para sermos devorados com cara de alegria. Sei que às vezes é preciso sim uma muleta para que possamos sustentar tanta dor. Mas, hoje, não quero isso.

Prefiro a máxima do velho Friedrich. A felicidade não pode ser imposta quando não existe. Ela que fique lá, no seu não-lugar, até que toda a dor seja consumida. E o doloroso sofrimento que fique aí, roendo até o osso. Até que chegue a hora de subir para o grande meio-dia. Sim, há riscos. Pode ser que não tenhamos força. Mas, o que é, enfim, viver? É essa grande batalha entre o agora e o talvez. Encarar é o desafio.

Então, sigo, atravessando essa noite escura, sem medo de parecer anormal. Não. Não estou feliz. E de cor-de-rosa só o meu sapato. Talvez para iluminar o caminho de subida, se vier... 

domingo, 12 de agosto de 2012

O interminável massacre do povo indígena


Até quando veremos, impávidos, o extermínio, sem fazer nada?

Quando os portugueses chegaram à costa brasileira nada mais queriam do que ouro e riquezas, da mesma forma que os espanhóis na região central de Abya Yala. Dar de cara com outros povos, outra língua e outra maneira de organizar a vida não causou problema. Eles tinham o poder das armas. E, assim, pela força dos arcabuzes, impuseram um deus, escravizaram, dizimaram, destruíram. A invasão de Pindorama nunca foi um “encontro de culturas”. Foi genocídio. Naqueles dias, milhões de pessoas foram mortas por conta da ganância dos estrangeiros. “Não têm alma”, diziam os piedosos padres. Os que resistiram se embrenharam nas matas, fugiram do litoral e conseguiram ficar à margem do extermínio por algum tempo. Mas foi um curto período. Com a colonização, os portugueses abriram caminho para o interior e nesse movimento tampouco pouparam pólvora. Os indígenas eram apagados do mapa. Depois, com a chegada dos imigrantes, novamente os indígenas passaram por violentas levas de extermínio.

O tempo passou e as comunidades indígenas que sobreviveram foram travando suas lutas. Houve páginas memoráveis de resistência. Na região norte, de mais difícil penetração, muitos grupos conseguiram seguir com suas vidas. Mas, no início do século XX, com a nova política de ocupação nacional, os indígenas voltaram a ser contatados, dessa vez com menos violência física, mas com a mesma intenção de negação da sua cultura e do seu modo de vida. A proposta era a de integrá-los à vida nacional, considerada “a civilização”. Apesar das boas intenções de figuras como o Marechal Rondon, a decisão de integração era unilateral. Ninguém perguntara aos indígenas se era esse o seu desejo. Era uma política de estado e estava baseada na ideia de que o modo originário de vida não era bom.

Na verdade, essa proposta de integração forçada também se configurava uma violência contra as comunidades. E, os que não aceitaram “se integrar” ao “mundo civilizado” tiveram de se manter em “reservas”, lugares previamente demarcados para sua “proteção”. Assim, aqueles que eram os donos legítimos dessas terras passaram a viver de favor, confinados e dependentes do governo em praticamente tudo, inclusive a comida. Não bastasse serem tutelados, os indígenas acabaram na linha de fogo de uma batalha contra aqueles que haviam se apropriado das terras: fazendeiros, grileiros, latifundiários. Não foram poucos os conflitos que se seguiram quando o Brasil decidiu ampliar sua fronteira agrícola. As comunidades que estavam em áreas férteis logo passavam a ser acossadas. Na região amazônica, as riquezas em madeira e biodiversidade tornaram a área extremamente cobiçada e também nas profundezas da selva os indígenas tiveram de enfrentar os mesmos inimigos de sempre: missionários, grileiros, ONGs, os “bem-intencionados”.

Todas essas lutas sempre se deram num contexto desigual. Primeiro, os indígenas eram os selvagens que precisavam ser civilizados, depois eram os preguiçosos que não queriam saber de trabalhar no mundo novo que tão bondosamente tinha sido dado a eles. De um jeito ou de outro eram apresentados à nação como seres inúteis, passíveis apenas de se manterem como “coisa exótica”. Quando essas comunidades começaram a lutar, outra vez, pelos seus territórios, toda essa carga de preconceito voltou à tona. E os índios passaram a ser apontados como aqueles que impediam o progresso do país. Garantir grandes extensões de terra a essa gente era vista como um absurdo, afinal, eles não trabalhavam. Tal e qual os portugueses de 1500, as gentes do poder seguiam olhando para os indígenas como seres de segunda categoria, incapazes, atrapalhos, coisa para ser aniquilada.

Ainda assim as lutas prosseguiram. Na Constituição de 1988 as comunidades indígenas lograram conquistar direitos. Seguiam ainda tuteladas, mas consolidavam um espaço de disputa no qual já era impossível negar a importância dessas gestes, de sua cultura e seu modo de vida, tão absolutamente outro, diferente do proposto pelo modo de produção capitalista hegemônico no mundo ocidental.

As lutas do presente

Quando o século XXI alvoreceu, em todo o planeta assomava um movimento gigantesco de recuperação da memória das culturas que foram oprimidas pelo colonialismo europeu do período chamado de “modernidade”. Nos anos 90, ainda no século XX, comunidades do Equador invadiram o centro da capital Quito, ocuparam igrejas e decidiram que tomariam a sua vida nas mãos. Em 1994 os índios chiapanecos, do México, também se insurgiram, em armas, tomaram cidades e decidiram que nunca mais o mundo viveria sem tomar em conta as suas demandas. Depois, foi um espocar de lutas e rebeliões por toda a faixa andina, na América do Sul, e nos cantões da América Central, no Caribe, na América do Norte (Estados Unidos e Canadá). O Brasil não ficou de fora. As comunidades, caladas por 500 anos, assomavam com suas palavras, seu mitos, sua cosmovisão. Queriam gerir suas vidas e proteger seu território, sistematicamente consumido pela voraz ambição do capital. Para esses povos a terra não é objeto de especulação, é espaço sagrado. Terra é mãe da vida, água é morada dos deuses, bichos são parte de um equilibrado sistema de sobrevivência. Essas coisas não tem preço, têm valor.

Para os homens do poder, esse movimento indígena é coisa que precisa ser freada. Não aceitam entregar a eles o domínio sobre suas terras, até porque muitas delas estão repletas de riquezas. Seus argumentos são singelos: os índios não sabem proteger seus territórios, vendem madeira por cachaça, não conhecem os instrumentos do progresso. Ou seja, não teriam condições de gerir com sapiência, as terras que lhe são confiadas. Assim, nada melhor do que eles, os capitalistas, para dirigir e controlar os territórios. Eles são trabalhadores, empreendedores, podem trazer o progresso, como é o caso das barragens que se constroem na Amazônia. Isso é cuidar, isso é proteger, isso é dar função social para a terra. E não essa ideia indígena de deixar a terra sem uso, que segundo eles, é anti-progresso. E assim vai se fazendo a queda de braço, tão desigual. Basta uma espiada na obra de Belo Monte para se ver os estragos causados à mata, à biodiversidade, às famílias ribeirinhas. Os índios resistem e são sufocados por armas e preconceito. E, na derrota dos indígenas vem a miséria de todos os que por ali vivem, porque o “progresso” dos capitalistas significa progresso apenas para alguns.

Não bastasse toda a história de extermínio, preconceito e opressão, agora a Advocacia Geral da União, órgão do governo, decidiu baixar uma portaria que estende para todas as terras indígenas no país, as condicionantes decididas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Judicial contra a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição 3.888-Roraima/STF). E o que isso significa? Mais um golpe na vida dos 800 mil índios que ainda resistem nesse país.

O Brasil na contramão

Concretamente, as tais condicionantes permitem que as terras indígenas possam ser ocupadas por unidades, postos e demais intervenções militares, malhas viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais de cunho estratégico, sem que os indígenas sejam consultados sobre isso, coisa que contraria frontalmente a Constituição e também a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Da mesma forma permite que haja uma revisão das demarcações em curso ou já efetuadas que não estejam dentro dessas regras, mais uma vez violando a autonomia dos povos sobre os seus territórios. Com isso, o governo tira das comunidades a possibilidade de elas mesmas decidirem sobre as riquezas naturais que existem em suas terras. Ou seja, entrega aos capitalistas o direito de explorar.

Outra forma de pressionar as comunidades indígenas é a transferência, para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), do controle das terras indígenas, sobre as quais, de maneira indevida e ilegal foram sobrepostas Unidades de Conservação. Ou seja, de maneira perversa buscam colocar os indígenas no papel de destruidores, poluidores e invasores de áreas ambientais.

A portaria 303, da AGU, é a forma moderna de dominação dos mesmos velhos opressores. Se antes eram os arcabuzes, agora é a lei. E o que é mais espantoso, uma lei que viola a Carta Magna. Ora, a decisão do STF só tem validade para a área da Raposa Terra do Sol, e já foi uma grande derrota dos povos indígenas. Por isso mesmo que a luta contra essa decisão específica não acabou. Os indígenas que ali vivem seguem questionando, em luta e na justiça, essa decisão. Ainda existem embargos não julgados. Como então a AGU pode editar uma portaria estendendo as condicionantes ainda não definitivas para as demais áreas? E quem disse que a AGU tem poderes para isso? Só o Congresso Nacional pode legislar sobre terras indígenas. A resposta só pode estar na pressão que vem sendo feita pelos latifundiários e empresários que querem ocupar e explorar as terras ricas em poder dos índios.

O mundo moderno é um mundo em luta pela energia. Esgota-se o petróleo e todo o modo de produção capitalista - que é destruidor na sua essência – está em colapso. Por conta disso, aqueles que detiveram o controle sobre a água e sobre a biodiversidade serão, sem dúvida, os que dominarão o mundo. Não é sem razão que grandes extensões de terras vêm sendo compradas por investidores internacionais em regiões como o Pantanal, a Amazônia, o Aquifero Guarani, justamente onde estão os indígenas “atrapalhando” o processo de dominação dos recursos e das riquezas. O governo brasileiro, seguindo a mesma mentalidade entreguista da maioria dos seus antecessores, se dispõe a conceder direitos aos ditos “empreendedores”, mais uma vez condenado os indígenas ao extermínio, e o povo em geral à dependência.

A se concretizarem os pressupostos da Portaria 303, qualquer terra já demarcada pode ser revista e tirada das comunidades, basta que dentro delas haja algo que seja do interesse dessa gente sempre pronta a sugar as riquezas do país. E, esse tipo de coisa só acirra ainda mais os conflitos existentes, nos quais as comunidades indígenas seguem em franca desvantagem, entregando todos os dias, os seus mortos. Como combater jagunços fortemente armados? Como se defender de milícias de mercenários bem treinados, franco-atiradores, assassinos de aluguel? É a história se repetindo.

Só a união de todos garante a vida

Para a sociedade, o governo faz propaganda e usa dos meios de comunicação mentindo descaradamente sobre diálogo e promoção de direitos indígenas. Mas, na prática, a política segue sendo a do extermínio e do massacre das culturas autóctones. Na contramão de tudo o que acontece na América Latina, aonde os povos originários vão conquistando cada dia mais direitos, o governo brasileiro caminha para o retrocesso, aliado ao agronegócio e aos interesses internacionais, jogando o povo inteiro nas malhas da eterna dependência.

É preciso que as gentes brasileiras conheçam o que está por trás das letras pequenas das leis. Que os sindicatos informem os trabalhadores, que se faça uma aliança entre os trabalhadores da cidade, do campo e as comunidades indígenas. Esses 800 mil índios que ainda resistem ao massacre iniciado em 1500 são a nossa herança histórica, a célula mãe da nossa cultura, legado imortal, parte constitutiva da nossa essência como povo. Defender o seu direito de viver nas terras originalmente ocupadas, de preservarem seu modo de vida, seus deuses, sua cosmovisão, de gerirem suas riquezas dentro dos princípios que lhes são únicos, como o equilíbrio ambiental e a reciprocidade, é garantir a possibilidade da construção de outra sociedade, justa e soberana.

Não é possível que as gentes brasileiras permitam que se entreguem as nossas riquezas aos poderosos de plantão, aos estrangeiros, aos ditos “arautos do progresso” que, na verdade, nada mais são do que os destruidores da vida. As comunidades indígenas nos mostram que há outras formas de vida, outro “progresso”, outro modelo de desenvolvimento. Negar isso é compactuar com um crime, é agir como agiram os invasores, os assassinos, é defender o massacre.

Já basta de sangue indígena em nossas mãos. Todo o repúdio a portaria 303.