domingo, 5 de agosto de 2012

Paulo Wrigth, estrada de liberdade


Sim, tenho esse privilégio. Assim como o guri do “sexto sentido”, eu também vejo gente morta. Mas é porque, como dizem os sandinistas, hay muertos que nunca mueren. E, esses, nada, nem ninguém, conseguem enterrar. Penso que são assim os que caíram nos tristes anos de ditadura militar. Os vejo por aí, nas ruas, cabelos ao vento, voz retumbante, como nos dias em que andavam a lutar por tempos de claridade. Por mais que uns e outros tentem varrer para debaixo do tapete as lembranças e as memórias dos anos de chumbo, elas assomam, impávidas, porque é preciso lembrar, sempre.

Dia desses vi o Paulo, nas ruas do centro. É, o guri de Joaçaba, filho de missionários, cristão rebelde, incapaz de calar diante da dor do outro. Paulo, que trabalhou na construção civil, na fábrica, que viu seu primeiro filho morrer por falta de assistência médica, que estudou, que fundou sindicatos e cooperativas, e se fez deputado estadual nesse estado de Santa Catarina. O Paulo, que ajudou a fundar a federação dos pescadores para que os homens do mar pudessem ter o controle do trabalho que faziam. O Paulo, que foi cassado no regime militar porque tinha a boca grande, não usava gravata e era apontado como “comunista”. O Paulo que amargou a clandestinidade em luta pela liberdade e pelo ideal cristão de amor ao próximo e ao distante. O Paulo, aquele homem bonito de olhos penetrantes e topetinho rebelde, assassinado em algum porão porque decidira lutar contra a violência de um regime de exceção.

Ao reconhecê-lo, sorri, e ele me devolveu o riso. Caminhamos num silêncio cúmplice, lado a lado, até a praça, onde sentamos sob a figueira. “Soubesse da última?”, perguntei. E ele jogou a cabeça para trás numa risada gostosa. “Então, fui cassado outra vez!”. É, um deputado desses dias, Gilmar Knaesel, tentando apagar outra vez a memória do Paulo. Já não bastaram tantos anos de silêncio, de olhares furtivos e murmúrios de “terrorista, terrorista”. Não! Era pouco. Havia que desaparece-lo outra vez. Como se fosse possível.

Paulo Stuart Wrigth sumiu nos primeiros dias de setembro de 1973, sequestrado de um trem pelo II Exército e levado para o malfadado DOI-CODI de São Paulo onde provavelmente foi assassinado e desaparecido. Dele, os colegas de cárcere só viram a blusa, caída no chão. Nunca mais se ouviu seu riso ou sua voz trovejante contra as injustiças do mundo. E desde aquela primavera a família busca seu corpo. Foram anos de lágrimas, de silêncios e de dor. Pouco a pouco, com o fim da ditadura, as histórias dos porões afloraram e os desaparecidos voltaram a gritar. Não havia corpo, mas havia memória. E elas vieram em borbotões. Nos livros, nos filmes, na televisão.

Com a história revisitada, aqueles que eram apontados como terroristas passaram a ser vistos como pessoas que tiveram a coragem de ser quem eram: jovens cheios de amor pela vida, pela liberdade, pela verdade, pela justiça. Gente que ousou enfrentar as armas do estado ilegítimo para que cada um pudesse ter o direito de dizer a sua palavra e clamar pelo mundo que acreditava melhor. Gente que foi torturada, que foi assassinada e escondida, para que suas ideias não voassem. Mas, voaram...

E foi assim que Paulo Stuart Wrigth voltou à vida. E aqueles que o acusavam de terrorista tiveram de olhar a verdade. Não o era. Era um jovem cristão, cheio de indignação: "...Diante de tanta injustiça e miséria que vemos no mundo e da opressão generalizada aos necessitados, proclamar-se inocente é inconcebível para quem buscar servir a Cristo. Querer ser inocente é aceitar as regras da injustiça, é aceitar passivamente a opressão, é não ter feito nada pelos que sofrem. Creio que é impossível ser cristão e não ser subversivo da ordem vigente, de ser fiel a quem trata de derrubar toda a autoridade, como nos fala São Paulo”, era o que dizia a sua esposa Edi, numa carta escrita em 1970.

Em Santa Catarina, há bem pouco tempo Paulo virou nome de estrada. Uma estrada pequena, perdida entre a BR 101 e a cidade de Penha, mas que, assim como ele, seria importante caminho de ligação das gentes do lugar. Talvez por isso – por ser caminho - ainda tenha quem queira escondê-lo, tirá-lo de cena. E, assim, criou-se um projeto de lei trocando o nome da estrada, de Paulo Wrigth para Francisco Fleith, ex-prefeito do lugar. Alguns disseram: “bobagem, deixa isso pra lá. Paulo nem haveria de querer ser nome de estrada”. Mas a questão não é essa! O que está em jogo é a memória. Por todos os lugares se perpetuam os nomes dos opressores, dos vendilhões, dos poderosos. Precisamos ocupar esses espaços de memória com a lembrança dos nossos.

E foi essa a conversa que tivemos Paulo e eu, naquela tarde, na Praça. “Tu tens razão, gosto de saber que alguém vai dizer: venha pela Paulo Wrigth e dobre à esquerda. Ali está o jardim”, ele disse. “Venha pela Paulo Wrigth”, repetiu, baixinho. “Pois, não é? Tu não tens corpo, mas és um caminho!”. Ele assentiu, satisfeito. “E como vai ser?” – Preocupa não, tá assim de gente fazendo abaixo assinado, falando, exigindo que o projeto seja vetado pelo governador. Ele sorriu e se preparou para andar... Devagarinho, se foi, o cabelo desalinhado pelo vento sul. E eu fiquei, sentindo a brisa, certa de que não há morte enquanto exista alguém se lembre. “Nós te lembraremos, Paulo”.

Os desaparecidos da ditadura, os meninos assassinados nas favelas, os arautos do tempo novo, essa legião de companheiros são as veredas por onde passamos nós, os que ainda sonham com um mundo melhor. Eles sempre serão caminhos e ninguém vai conseguir mudar isso...

“Creio que a fé cristã não se identifica com nenhum sistema particular. Ao mesmo tempo o homem pode ser socialista e os fatos dizem que muitos cristãos o são. Entendo que nós, como cristãos, temos a obrigação de reagir precisamente na hora que nos toca viver. No mundo de hoje se vislumbra uma coincidência entre as aspirações dos cristãos e dos socialistas quanto à vida humana, isto é, justiça e bem estar do homem”. (Paulo Wrigth).