domingo, 12 de fevereiro de 2012

O subcomandante Zizo







Eram cinco horas da manhã quando o conhecemos. Ele iria nos levar a Luxor para iniciarmos um passeio pelos templos do antigo Egito, desde ali até Aswan. À primeira vista, uma pessoa comum e, para todos os que ali estavam (éramos 10 pessoas) não passaria de mais um daqueles guias turísticos que parecem autômatos, dizendo um texto que decoraram sobre um detalhe ou outro do lugar histórico. Era uma coisa chata, mas não tínhamos saída, ninguém ali sabia falar árabe. Ao fim, o que se anunciava como uma tremendo maçada se revelou a melhor parte da viagem: conviveríamos por cinco dias inteiros com uma das pessoas mais incríveis do Egito.

Apresentou-se como Zizo e falava muito bem o espanhol. Desfiou um rosário sobre as regras do passeio, os horários e a lista das visitas. Parecia tranqüilo, mas já se notava que era quase obsessivo com a disciplina. O primeiro passeio que fizemos foi ao Vale dos Reis. E lá, já se percebeu que Zizo não era um guia comum. Falava da história do Egito com uma paixão e uma sabedoria incríveis. Sabia cada detalhe, do mundo antigo, do mundo moderno, da política, da religião. Mas não era aquela coisa decorada dos guias. Era um egípcio apaixonado que estava ali e um homem sábio.

Em menos de meia hora já sabia de cor o nome de todos no grupo e quando saíamos do vale, fez sua primeira confidência. Quando mais moço era um garoto introspectivo e muito estudioso, tanto que parecia fora do normal. Teve de ir ao médico por isso. E o psicólogo que o recebeu, de cara soube que ali não estava um cara comum. “Ele falou que no mundo as pessoas eram assim, 1/4, 1/4, 1/4. Que eu tinha sorte, porque não havia nascido partido. Eu era um inteiro”. Nós haveríamos de comprovar que sim.

Cada lugar por onde passávamos era uma aula de história, repleta de detalhes e impressões pessoais. Zizo contou que havia estudado muito a história do Egito, quatro anos de egiptologia, outros quatro de espanhol, mais uma vida a estudar o Corão. Seu destino era ser professor, para isso estudou. Mas, ao saber como agia a maioria dos professores no Egito, desistiu da carreira. “Aqui os professores ganham uma salário bem baixo do estado, então eles praticamente obrigam os alunos a terem aulas particulares, por fora. É aí que ganham dinheiro. Eu não poderia fazer isso. Jamais exigiria pagamento extra para ensinar. E com o salário de professor não dá pra viver. Então preferi ser guia de turismo. Era mais honesto”.

Mas, essa escolha lhe custou o primeiro amor. Disposto a se casar com uma moça do seu povoado, ele tentou conversar com o pai dela. Mas, o fato de ele ser um guia – coisa que o pretenso sogro não aprovava – pesou na balança e ele não conseguiu o casamento. “Aqui, a nossa cultura é assim. O namoro sempre é mediado por algum amigo ou familiar e, nos povoados, o pai ainda é quem decide sobre o futuro das filhas. Isso não é o Islã que dita, é o costume”. Aquela recusa lhe marcou a vida, mas, pouco tempo depois, disposto a tocar a existência, ele conseguiu encontrar uma esposa, que é psicóloga, a qual ama muito e que lhe deu dois lindos filhos, seu orgulho.

Os dias com Zizo foram intensos e cheios de alegria. Como um general de brigada ele comandava o grupo com mão de ferro. Ninguém podia atrasar um minuto e se alguém falasse enquanto ele dava as explicações, amarrava a cara e falava em árabe. Era certo que estava a vociferar contra os insubordinados, ainda que seus olhinhos apertados parecessem sorrir. Mas, ao final, tudo acabava em risos. O fato é que o grupo todo – formado por seis argentinos, dois mexicanos e dois brasileiros – passou a respeitar o Zizo de tal maneira que nenhuma regra era quebrada. Quando estávamos no barco, navegando, sem nada para ver, o comandante ditava a ordem: “As cinco, na hora do chá, vamos nos reunir para falar de cultura árabe”. E ninguém faltava. Enquanto outros turistas ficavam ao sol, na beira da piscina, o grupo de latino-americanos se reunia em volta do Zizo para ouvir suas histórias, as coisas da cultura e a verdade sobre o Islã. Aquele homem encantou a todos.

Seu amor pela religião que cultua e pela história do seu país eram coisas de tocar o coração. Ninguém ficou imune. “Aqui no Egito os pais ainda tem o costume de cortar o clitóris da mulher. É uma coisa horrível, mas isso não tem nada a ver com a religião. Não é culpa do Islã, é coisa do costume. E isso pode mudar. Eu tenho dois filhos, mas se tiver uma filha, não vou permitir isso”. No Egito, quase 95% das mulheres são mutiladas, e isso perdura até hoje. Sobre a religião, Zizo explicou cada coisa, cada pergunta, cada dúvida. Vê-se que é um homem crítico: O Corão foi escrito há muito tempo, mais de 1400 anos. Então há coisas que não podem mais ser vividas ao pé da letra. Por exemplo, se o profeta só viajava em camelos, era porque só camelos havia. Se seguirmos ao pé da letra então teríamos de seguir viajando de camelo. Há coisas que podem evoluir sem que se percam os princípios da fé”.

Sobre as mulheres e seus véus Zizo insiste que é uma questão cultural. “Eu acho muito mais bonito ver uma mulher de véu. Um ocidental pode pensar diferente. Não vejo onde isso interfere na liberdade. Uma mulher sem véu não é mais livre só porque está descoberta. Por exemplo, no ocidente, uma mulher sem véu não é também escrava dos padrões de beleza? Somos culturas diferentes. Se isso não for compreendido não tem como dialogar”.

No último dia no Nilo, quando todos já estavam completamente rendidos ao grande companheiro que era nosso guia fomos parar numa aldeia Núbia. Lá, tivemos aula de núbio e árabe, tudo sob o comando de Zizo, que inclusive escreveu o nome de cada um em árabe, para que pudéssemos aprender. Então nos surpreendeu revelando seu verdadeiro nome: eu digo Zizo porque é mais fácil para os estrangeiros entenderem, mas eu gosto mesmo é de ser chamado pelo meu nome verdadeiro – Abdel Aziz. Foi um momento de profunda emoção porque todos se davam conta que aquele que se expunha diante de nós não era mais o guia, o trabalhador que nos orientava, era um amigo. Ele nos confiava seu mais delicado presente: a identidade.

Aquela noite Abdel Aziz foi o centro das nossas conversas. Todos os companheiros estavam completamente tomados de amor porque aquele grandalhão disciplinador. A viagem adquiria outro caráter. Era como se estivéssemos caminhando com um velho amigo. No dia seguinte o grupo se dispersou e só fomos nos encontrar dias depois no Cairo. No reencontro, as reclamações: os guias não eram Abdel Aziz, nem dava para comparar. E quando o nosso amigo entrou na porta do hotel para o último passeio que faríamos juntos, foi uma gritaria geral. Ali estava Abdel Aziz, a quem já só chamávamos pelo nome real, para mais um dia de profundo encontro com a história e com a vida do Egito.

O final do dia marcou a despedida. Foi um momento de profunda comunhão. Sabíamos que desde agora, o Egito se concretizará no rosto e na delicada sabedoria de Abdel Aziz. Tudo que ocorrer naquele país que vive hoje sua revolução, nos tocará mais profundamente porque saberemos que lá estará nosso amigo a lutar por vida boa e bonita para todos. Ele já havia nos ensinado que os muçulmanos não têm o costume de abraçar, muito menos se o outro é mulher. Mas nós não poderíamos vir embora sem um longo e apertado abraço naquele homem especial. “Abdel Aziz, nós somos latino-americanos, o abraço é nossa forma mais profunda de demonstrar amor. E nós vamos te abraçar até quebrar os ossos”. Assim nos despedimos, eu, meu irmão e as duas companheiras argentinas, Cristina e Inês. Nós enchemos Abdel Aziz com abraços e saímos dali com lágrimas nos olhos.

No dia seguinte, já no avião vindo para casa, a gente se perguntava: onde estará agora Abdel Aziz? Quem estará a comandar com mão de ferro e coração de menino? Ele nunca mais sairia de nossa lembrança. E agora, nesses dias em que se vê na televisão os confrontos e conflitos que seguem no Egito, a primeira imagem que nos vem à cabeça é a dele. Sabemos que lá está, vibrando na mesma onda que toda aquela juventude, a exigir um Egito livre e feliz. Que Alá o proteja e o mantenha assim, um homem íntegro, simples, cheio de esperanças, amoroso e apaixonado por seu país.

Al Salam aleikon, Abdel Aziz!! Chukran, subcomandante...

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