sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Os mineiros e a mineração chilena



Como todo mundo, acompanhei, emocionada, o resgate dos mineiros da mina São José. Depois de quase 70 dias enterrados, vivendo nas entranhas da Pachamama, eles voltaram à vida, numa operação de resgate inédita, a qual não faltaram a coragem, a ousadia, a solidariedade, a cooperação. As cenas que se sucediam, a cada homem que vinha à luz, eram de profunda mística. As famílias, principais responsáveis por aquele milagre, esperavam, com o rosto transfigurado de alegria, a chegada dos seus. E eles saiam da cápsula, com a aura de quem havia caminhado no escuro do mundo inferior e voltado para contar. Isso não é pouca coisa para o universo cultural das gentes do atacama. Afinal, no mundo dos likan antay, tal como se autodenominam os originários da região do deserto chileno, o mundo inferior é morada dos mortos. Na Bolívia, os aymara respeitam tanto esse mundo subterrâneo que não há uma mina que não tenha a figura do “tio”, espécie de entidade mágica que faz a ligação entre o mundo de baixo e o de cima. Levar oferendas ao “tio” é imprescindível para que as gentes possam transitar no mundo inferior e voltar. Assim, aqueles homens que viveram a angustiosa espera de quase 70 dias no território da morte, certamente haverão de mudar suas vidas para sempre. Isso é altamente perturbador.

Quem via aqueles homens saindo da cápsula, poderia pensar que aquela gente é quase mineral, talhada em cobre, prata e ouro. As caras angulosas, os narizes esculpidos, tornam os mineiros chilenos uma espécie de escultura forjada na riqueza que produzem dia após dia, cavoucando as entranhas da Mãe Terra. Mas, a história daqueles homens, perdido no deserto mais seco do mundo, não foi sempre assim. Antes da chega dos espanhóis e da invasão de seus mundos, o minério que hoje é responsável pela vida e pela morte, não era usado para gerar riqueza. Ninguém feria a Pachamama para dela arrancar o lucro. Apenas o que brotava do chão era colhido para se transformar em adorno ou objeto de cerimônia. Foram os homens brancos que trouxeram a febre do ouro, e com ela a destruição, que perdura até hoje.

Apesar de ser um dos lugares mais secos do mundo, premido entre os Andes e o mar, o deserto tem seus espaços de vida nas chamadas quebradas, espécie de oásis, com pequenos riachos, onde se concentram as cidades. Ali vivem os atacamenhos desde há milênios. Há registros de que há 11 mil anos já era povoada a quebrada de San Lorenzo, assim como há 1.500 anos já se configuravam verdadeiras comunidades sedentárias, como o povo de Tulor, do qual se pode ver as ruínas das construções e o modo de vida. Essa era uma gente que viva no deserto em harmonia com as forças da natureza. Inscrições nas rochas dão conta de que eles realizavam longas jornadas comerciais, ligando-se inclusive ao povo de Tiahuanaco, na Bolívia e ao povo inca, no Peru. Sob a sombra do sagrado Licancabur (um vulcão) eles faziam cerimônias, davam pago a terra e viviam em paz.

Esta paz só foi quebrada por volta de 1536 quando os espanhóis Diego Dalmagro Valdívia e Francisco Aguirre iniciaram a jornada de conquista pelo interior. Naqueles dias, o povo atacamenho já tinha recebido notícias dos saques e destruição impetrados pelos espanhóis e preparou-se para resistir. Do alto da fortaleza chamada de “Pukará de Quitor” (fortaleza do alto) eles esperaram os brancos e lutaram bravamente por longos 20 anos. Mas, sem armas de fogo ou cavalos, acabaram vencidos pela supremacia bélica das hordas espanholas. E desde aí começou a escalada da mineração naquele lugar de sonhos.

Quem anda pela estrada que vai de São Pedro de Atacama à Calama, não pode deixar de se surpreender com a visão de Chuquicamata, a maior mina a céu aberto do mundo. No meio da paisagem árida e marrom de pedras e areia, aquele gigantesco buraco é como uma ferida aberta, uma espécie de monstro a consumir a vida dos seus 15 mil trabalhadores dia após dia. A lembrança desta cena torna absolutamente perturbadora a cena do grito de guerra dos mineiros chilenos na medida em que cada companheiro saia da mina. Um grito de bravura e de amor a uma profissão que lhes foi imposta pela força e que custou a morte de quase toda a população autóctone dos lugares por onde os espanhóis semearam esta forma estranha de arrancar da terra suas riquezas minerais.

Historiadores da vida chilena estimam que de 1542 a 1560, início do processo de mineração na região do deserto, os espanhóis arrancavam mais de dois mil quilos de ouro por ano, usando para isso a mão de obra escrava do indígena conquistado. A rapinagem foi tão grande que este primeiro ciclo alucinado do ouro durou bem pouco. Ao final do século XVI esta atividade já estava esgotada, não tanto por faltar ouro, mas por não haver mais gente para fazer o trabalho. O genocídio se consolidava.

A nova onda de mineração na região chilena só voltou a crescer no século seguinte quando o capitalismo nascente decidiu alavancar o comércio de matérias primas, dando prioridade aos metais preciosos, dos quais a região era extremamente rica. Naqueles dias a mão-de-obra já se recuperara e o ouro voltou a ser extraído com produção duplicada, assim como o cobre que teve um acréscimo de 20 vezes. No caso da prata o aumento da produção passou para 400 vezes mais, o que custou a dizimação de quase todo povo aymara e quéchua da Bolívia. No Chile, a produção de cobre chegou a duas mil toneladas por ano, quase maior do que a produção de trigo.

Com a revolução Industrial caminhando a todo vapor, o cobre passou a ser um metal muito requisitado, o que aumentou o processo de mineração no Chile. De 60 toneladas em 1826, a exportação para a Inglaterra passou a 12.700 toneladas em 1835. Em 1940 a produção total era de 44 mil toneladas por ano. Aquela era uma riqueza tão essencial que mesmo durante as guerras de independência a mineração se manteve praticamente intocada. E, logo depois da independência, passou a ser vital para o desenvolvimento das forças produtivas no país. Instalada a república e definido o modo capitalista de produção a mineração passa a ser dominada pela elite local assim como por algumas empresas estrangeiras que viam ali uma fonte inesgotável de riquezas. Até porque, se não havia mais a mão-de-obra escrava indígena, agora, a massa de trabalhadores “livre” e empobrecida seria a cereja do bolo. Baixos salários e muita exploração fizeram a riqueza de alguns. Nada muito diferente do que é hoje.

E foi assim que o Chile converteu-se num país de mineradores e mineiros. Quando o século XX chegou, a exploração anual da prata chegava a 150 mil quilos e, embora o cobre tivesse caído bastante, ainda representava importante setor da economia. Naqueles dias outros minerais assomavam para garantir mais lucro aos donos das minas: o salitre e o carvão de pedra. As riquezas brotavam do chão, mas só para alguns. Por isso, acaba sendo tão desolador um passeio pela cidade de Calama, por exemplo, onde a pobreza e falta de estrutura são gritantes. Ali vivem os que adentram ao “mundo inferior” para extrair as riquezas que jamais serão usufruídas por eles, nem mesmo em termos de políticas públicas. O Chile, como se sabe, depois de viver uma longa e feroz ditadura, foi o produto mais acabado das políticas neoliberais, privatizando praticamente tudo.

Salvador Allende, durante o curto período que ficou no poder chegou a nacionalizar algumas minas e delimitar o investimento estrangeiro, mas tudo isso foi pelo ralo com o golpe militar, que voltou a entregar as riquezas minerais do Chile às grandes empresas transnacionais. Nos anos 90 do século XX, o setor mineiro chileno vive outro momento de expansão, também fruto de gigantescos investimentos estrangeiros. Leis específicas são criadas para dar legitimidade ao saque e, segundo dados do próprio governo (http://www.minmineria.cl/574/w3-propertyvalue-1986.html) nas últimas décadas foram registrados ingressos que oscilam de 73 a 245 milhões de dólares anuais. Entre 1990 e 2002 entraram 18 bilhões de dólares. Desde 1990 o Chile triplicou a produção de cobre, chegando a 4,6 milhões de toneladas anuais.

Os fatores que levam os estrangeiros e a elite local a investir tanto dinheiro na atividade mineira são alardeados pelas autoridades, assim como o presidente Piñera alardeou ao mundo no seu discurso, tão logo saiu o último mineiro da mina acidentada: “a fortaleza e a capacidade técnica de nossa gente”. Nos relatórios de empresas especializadas em mineração no Chile, que podem se encontrados na internet, esse fator também é contado como fundamental. O braço forte do homem chileno, e o baixo salário que ele recebe por isso.

Dados divulgados por uma empresa chamada de “Corporação para o desenvolvimento da região do Atacama” mostram friamente a situação dos trabalhadores diante destes exuberantes números de investimentos e exportações: A pobreza extrema toma quase 20% da população, o índice de aproveitamento escolar das crianças é baixíssimo e menos de 2% de quem termina o segundo grau vai para a universidade, os índices de desenvolvimento humano nas cidades da região são ínfimos. Não há saneamento, as moradias são precárias, não há saúde pública, muito menos educação. Por outro lado, 47% da economia gira em torno da mineração, dali saem 90% do ouro, 82% da prata e 100% do ferro e 80% de tudo que é exportado. Até 2015 estima-se que mais de 162 milhões de toneladas de cobre possam ser exploradas. Ou seja, é o lugar perfeito para uma empresa investir. Como bem já definiu Ruy Mauro Marini, a periferia do sistema capitalista se caracteriza justamente pela capacidade de superexplorar o trabalho. Ou seja, não basta ao capitalista sugar a tradicional mais-valia, é preciso ampliar essa marca, estendendo a corda até as últimas conseqüências.

Neste universo de números astronômicos, riquezas polpudas e exploração desenfreada dos trabalhadores ainda há que se discutir os motivos reais que levaram ao acidente da mina São José. Um senador ligado ao setor mineiro, Carlos Cantero, apressou-se em dizer que o acidente não pode servir para demonizar as médias e pequenas empresas mineradoras que, via de regra, são as que investem menos em segurança. E, nesta onda, o presidente Sebastián Piñera, que nadou de braçada no “espetáculo” da retirada, também prometeu aos mineiros que vai pedir um relatório minucioso sobre as condições de segurança das minas e que vai investir muito mais neste setor. “Não só no setor mineiro, mas também na educação e na saúde”, prometeu, eufórico, no discurso final pós-resgate. Nunca é pouco lembrar que o homem afável e sorridente que acompanhou a saída de cada um dos mineiros acidentados é o mesmo que se manteve inflexível diante de uma greve de fome dos prisioneiros políticos da etnia Mapuche, que estão presos acusados de terrorismo, embora tudo o que tenham feito seja lutar pela demarcação de suas terras e por autodeterminação.

No caso da mina São José, o que fica de perplexidade é que seus donos, Marcelo Kemeny y Alejandro Bohn, já são bastante conhecidos no Chile pela falta de cuidado com os trabalhadores. Uma reportagem de Claudia Uriquieta dá conta de que existem muitas demandas judiciais contra eles, justamente por falta de segurança no trabalho, tendo já sido registradas pelo menos três mortes, dezenas de feridos, muitos mutilados, além de vários desabamentos. O sindicato dos trabalhadores vem desde longa data exigindo que as minas tenham sempre duas áreas de escape, para que não aconteça justamente o que aconteceu. Mas, a Suprema Corte chilena negou o pedido dos trabalhadores, protegendo assim os empresários que teriam de investir muito mais para garantir a segurança dos mineiros. E, para coroar este completo desdém pela vida dos trabalhadores, estes empresários ainda são agraciados com prêmios e recebem títulos de patronos dos mineiros (http://www.iela.ufsc.br/?page=noticia&id=1525).

A retirada dos mineiros da mina desabada seguiu todos os rituais do espetáculo midiático. Apenas a cena carregada de emoção da saída, do encontro com familiares, a dedicação dos socorristas. As redes a cabo ainda conseguiram apresentar uma entrevista aqui e ali falando dos problemas recorrentes no campo da mineração chilena. Mas, ao final, o que restou foi a catarse. O povo chileno nas ruas, com bandeiras, as lágrimas, os sorrisos, a alusão à solidariedade de todos, à fortaleza destes trabalhadores que conseguiram sobreviver a uma longa noite no mundo inferior. O presidente ainda foi aclamado como um herói, porque, afinal, gastou 20 milhões de dólares com o resgate. Ora, foi até pouco diante da dívida histórica que tem com esse povo que, no segundo quartel do 1500 foi obrigado, por conta da invasão, a se transformar em uma espécie de tatu, esburacando a terra em busca de riquezas que não consegue verdadeiramente tocar.

E agora, passada a ressaca do “espetáculo”, o que acontecerá naqueles fundões do deserto? Um milionário chileno já adiantou que vai doar uma bolada para cada um dos sobreviventes. E as gentes se emocionam com esse empresário tão bonzinho. É a versão chilena da “síndrome do Gugu”, essa perversa proposta de dar uma casa a um pobre por semana, resolvendo assim a vida de uma família, e evitando que a luta coletiva cresça para dar conta da melhoria da vida de todos. Estes mineiros que ficaram prisioneiros no interior da Pachamama podem até melhorar de vida. Mas e os milhares de outros trabalhadores que seguirão arriscando suas vidas nas minas mal cuidadas e sem proteção? Quem chorará pelos que caírem soterrados nas centenas de acidentes que acontecem recorrentemente?

A resposta a essa pergunta já foi dada, pelo próprio espetáculo midiático, e, como dizia Jesus: quem tem olhos para ver, que veja. Quando o último homem saiu da cápsula, era um dos socorristas que haviam descido para ajudar os mineiros, todas as atenções já estavam no presidente Piñera, que dava seu discurso. Apenas um quadrinho, no lado direito da tela mostrava a chegada daquele ser humano anônimo. O presidente seguia, sorrindo, faceiro, fazendo promessas ao Chile, enquanto os trabalhadores se abraçavam e acolhiam o companheiro. Estavam ali, sozinhos, outra vez. O poder instituído já estava viajando em outra órbita.

Por isso, não há heróis neste drama latino-americano. Há, isto sim, a repetição do eterno mesmo. Aos trabalhadores cabe conhecer a história e aprender a lição que foi dada pelos familiares dos soterrados. Aquela gente atacamenha, aquela gente forjada no cobre e na rocha do deserto, não arredou pé da mina. Fez acampamento, exigiu. E foi essa força que garantiu o resgate. Nada mais que isso, a força do povo unido. Se as gentes em pequeno número conseguem coisas assim, o que não conseguirão os trabalhadores, juntos?


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

12 de outubro – Dia de Resistência e Luta dos Povos Originários

O dia 12 de outubro marca um momento importante na vida dos povos desta parte do mundo. Foi neste dia, no longínquo 1492, que Cristóvão Colombo aportou numa pequena ilha do Caribe, achando que havia chegado às Índias. Ele e seus homens não vieram em paz. Tudo o que queriam era o ouro e não respeitaram coisa alguma no caminho. Com eles chegaram também a violência, o genocídio, a destruição, coisas típicas do capitalismo nascente. As terras novas foram invadidas por hordas de europeus em busca de riqueza e aos povos originários foi dada como opção a escravidão ou a morte. Mas, entre os que aqui já viviam desde há milênios, assomou outra proposta: resistir e lutar!

Muitas foram as batalhas contra o branco invasor, até com algumas vitórias, como a famosa “noite triste” (para os espanhóis e não para os originários), em 30 de junho de 1520, quando os guerreiros mexicas imprimiram uma fragorosa derrota a Hernán Cortéz. Ou, para lembrar as lutas dos povos de Pindorama (Brasil), a Confederação dos Tamoios em 1556, chefiada pela valente nação Tupinambá contra os portugueses, que obrigou a libertação de todos os escravos. Mas, ao fim, os povos de Abya Yala não puderam vencer as armas de fogo, tecnologia que não conheciam. Assim, pouco a pouco, todas as terras desta parte do continente foram sendo invadidas e as gentes autóctones que não aceitavam a integração à força, ou eram mortas ou obrigadas a viver em reservas, como bichos exóticos. Por longos tempos Portugal e Espanha saquearam as riquezas do novo continente. Muito do ouro e da madeira nobre que se vê nos castelos e igrejas da Europa foram tirados daqui. Até mesmo a tão aclamada revolução industrial só foi possível por conta do ouro e da prata que os ingleses levavam de Portugal e Espanha, os quais, por sua vez, roubavam de Abya Yala.

E desta forma foi se formando a riqueza européia enquanto os povos da agora chamada América Latina seguiram na periferia, praticamente a margem das benesses do desenvolvimento, que só se fazia possível por conta das riquezas saqueadas. Os tempos passaram e as gentes originárias foram elaborando sua resistência na quietude das planuras, na solidão das montanhas. Por isso, quando todos imaginavam que o extermínio já estava consumado e nada mais restava além dos “reservados exóticos”, os povos originários reaparecem com força total, lutando com unhas e dentes para preservar aquilo que consideram sagrado: a terra, a água, as floresta, enfim, o ambiente, como um espaço bendito de tudo aquilo que vive.

Para os povos autóctones o chamado “desenvolvimento”, para além das bugigangas modernizantes que podem ter melhorado a vida de todos no cotidiano da vida urbana, trouxe principalmente a destruição. Observando como o capitalismo organizava a vida das gentes ao longo de todos estes anos de dominação, os originários compreenderam que isso era ruim e não lhes servia. Nesse sentido eles propõem outro conceito, nascido de suas próprias entranhas, do conhecimento e do contato que eles sempre mantiveram com as forças da natureza: o bom viver. Esta é uma forma de organizar a vida que pressupõe elementos esquecidos e abandonados pelos homens e mulheres “modernos”, mergulhados no modo de produção capitalista. As propostas do bom viver são a de um desenvolvimento capaz de servir às gentes e a natureza, em harmonia, o que por si só já descarta o modo de produção capitalista, no qual para que um viva, outro tenha de morrer. O bem viver não comporta o acúmulo de riquezas, pois tudo o que há sobre a terra e que os seres humanos produzem juntos deve ser repartido. No bem viver o centro de tudo é a vida comunitária, esta é a que deve ser preservada e conservada.

Talvez para as pessoas acostumadas ao modo de viver ocidental, capitalista, seja praticamente impossível compreender o significado real do sumak kawsai (o bom viver), porque suas mentes e corpos já estão acostumados a acreditar que a melhor vida possível é essa que está aí, com a competição, o desenvolvimento predador, o egoísmo, o individualismo. Mas, nunca é tarde para se debruçar sobre essa proposta que emerge das profundezas da vida originária. E, que fique bem claro. Não se trata de voltar ao passado, renegando todos os avanços da humanidade. Não. Até porque cada avanço diz respeito a toda a comunidade humana. Nenhum invento, nenhum conhecimento dito “moderno” foi criado a partir do nada. Tudo é fruto da comunidade, seja na herança do saber, seja no financiamento, seja no alto preço que pagam os da periferia para que o centro cresça e produza riqueza. Tudo está interligado. Tudo é conquista comunitária, embora o sistema insista em fazer crer que são pessoas isoladas, ou países específicos, os que logram fazer caminhar o conhecimento.

O que as gentes originárias colocam na grande mesa do saber humano é uma proposta de vida que está ao alcance de todos, autóctones ou não. Equilíbrio, solidariedade, cooperação, respeito, justiça comunitária, alteridade, interação com a Pachamama, sacralidade da vida mesma, como ressalta Dussel. É uma proposta radical, revolucionária, que exige a “desconexão”, tal qual já propôs Samir Amin. Adentrar ao modo de vida do bem viver significa uma ruptura completa com o modelo capitalista. É um desafio abissal, que exige compromisso e desapego. Exige a destruição de todos os valores do mundo moderno e a aceitação de um jeito de viver comunitário absolutamente desconhecido para a maioria das gentes.

É por isso que neste 12 de outubro, em todas as parte de Abya Yala, os povos originários estarão celebrando e apontando caminhos. Celebram, não a conquista de Colombo, porque, afinal, nunca se deixaram vencer. Celebram a resistência. É certo que por algum tempo, premidos pela força bruta, aquietaram seus corpos, mas, lá dentro, vibrava, acesa, a chama do que chamam de bom viver. No escuro de suas choças, eles chamavam seu nome e esse desejo seguiu andando pelas cordilheiras, pelos caminhos. Na escuridão da noite destes 500 anos, eles acendiam fogueiras, davam pago à Pachamama, reverenciavam seus deuses. Agora, estão aí, à luz, cada dia mais fortes, reivindicando seu comunitário jeito de viver, autonomia e autodeterminação.É tempo de aprendermos com eles.

Assim, o 12 de outubro, que é visto pelo colonizado como o Dia do Descobrimento ou, pelos bem intencionados como o Dia da Raça, é, na visão do originários o Dia da Resistência, o Dia da Luta, a hora de fazer ecoar por todos os cantos da terra essa boa nova: as gentes autóctones estão vivas, estão crescendo, dizem a sua palavra e propõem mudanças. É chegada a hora do bom viver!