sexta-feira, 19 de março de 2010

Um plano do povo



Enganam-se os que pensam que Florianópolis – a velha Miembipe - é um espaço conservador ou reacionário. Aqui, nas veredas da vida real estão as gentes a protagonizar momentos históricos importantes. Foi aqui que começou a agonia do regime militar, com os bravos estudantes – junto com o povo alçado em rebelião – promotores da inesquecível “Novembrada”, assinalando a derrocada do presidente que amava mais o cheiro dos cavalos do que do povo. Foi aqui também que as gentes se levantaram na revolta da catraca, contra as falcatruas dos empresários do transporte coletivo. E, todos os dias, nos bairros, nas vilas, nas comunidades, a população está protagonizando alguma luta importante contra os que querem destruir a vida. Este é um espaço de gente que luta e constrói novas propostas de organizar a vida.

Foi assim nesta quinta-feira, dia 19. Este povo todo, vindo dos lugares mais longínquos da cidade, com faixas, cartazes, camisas pretas, e toda a gana possível, realizou mais um feito histórico. Erguidos em luta, aqueles que amam o lugar onde vivem, vieram protestar contra a farsa montada pela prefeitura municipal, que pretendia homologar um plano diretor da cidade, construído sem a voz das comunidades. Esta gente, que durante três anos ocupou noites e noites de suas vidas para discutir a cidade e encontrar caminhos viáveis para existir neste especo caótico, acorreu à audiência e decidiu que ali, a sua voz haveria de ser ouvida. E assim se fez!

A cidade e o caos
Meia hora antes da audiência na qual o Instituo Cepa – empresa privada contratada pela prefeitura para fazer o Plano Diretor – iria apresentar a proposta que desenhou, amparada nos desejos dos empresários especuladores, já se vislumbrava a cidade que haveria de assomar daquele plano. Trânsito parado em todas as direções. Parado na Beira-Mar, no túnel, nas imediações do TAC. Buzinas tocando sem parar, gente gritando. O caos. A cidade desenhada para servir aos carros mostrava sua face irracional. Sem um transporte coletivo eficaz, as pessoas optam pelo carro e comandam um festival de engarrafamentos que tornam a mobilidade urbana um inferno. E isso com pouco mais de 380 mil habitantes.

O plano diretor construído pela CEPA quer tornar esse inferno ainda maior. Propostas esdrúxulas como prédios de oito andares na Lagoa da Conceição, de seis no Campeche e por aí afora, prognosticam uma Florianópolis de amanhã com 800 mil habitantes, um milhão. Uma cidade vertical para a classe média. Um lugar onde os ricos haverão de ter suas “ilhas de paz e beleza”, ainda que para isso seja necessário privatizar praias, como a do Costão do Santinho, ou mesmo o maior aqüífero que há na ilha, o aqüífero dos Ingleses. Ali, sob o lençol de água, os ricos jogarão golfe, enquanto as gentes amargarão a falta do líquido que garante a vida.

Pois o povo organizado nas comunidades, nas associações de moradores, disse não. Estudaram a cidade por três anos, construíram propostas, apresentaram alternativas, saídas viáveis para a vida, para as moradias, o transporte, para tudo. Só quem vive numa cidade sabe o que nela falta. O povo tem a resposta para cada questão. E isso foi feito em audiências públicas, oficinas, reuniões, tudo documentado. Por que então, a prefeitura vinha dar um golpe, impondo um plano que a população não quer? A cidade iria se levantar. E foi o que fez.

A audiência
A noite baixava sob a capital parada e caótica. Mas as pessoas caminhavam. Vinham de todo canto, de ônibus, de bicicleta, de carro, à pé. Encheram o TAC, ocuparam as calçadas, eram mais de mil. Multidão. Vieram os pescadores, os nativos, os ecologistas, as senhoras de idade, os estudantes. Vieram os líderes comunitários, os sindicalistas. Todas as cores e tendências políticas unificadas na luta contra a especulação e a destruição da cidade. Foi bonito de ver.

O presidente do IPUF iniciou a audiência, chamou o presidente do Instituto CEPA. Já começaram as vaias. Cada autoridade chamada era apupada. Manifestação pacífica, direito das gentes. As caras, na mesa, se torciam, incomodadas. As vaias seguiam. Átila Rocha dos Santos, presidente do IPUF, mostrou a cara autoritária da prefeitura. “Ou param ou suspendo a audiência e chamo a polícia”. A tropa de choque já aguardava do lado de fora, pronta para agir, porque é comum aos dirigentes que não são democráticos, terem medo do povo. Foi o que bastou. A gritaria foi geral.

Então, no meio do corredor assomou o vereador Ricardo Camargo Vieira (PCdoB), fazendo aquilo que deveria fazer um político que tem mandato do povo: com um megafone, suplantando o som do mestre de cerimônias, gritou o protesto das gentes. “Esta audiência é uma farsa, esse não é nosso plano”. A ação do Dr. Ricardo foi a deixa para que cada pessoa que ali estava quisesse dizer sua palavra. O presidente do IPUF gritava, chamando a polícia. Entrou a guarda municipal, mas nada mais detinha as gentes. Elas foram subindo no palco e revezando o megafone. As autoridades da mesa escapuliram, o diretor do IPUF mandou cortar o som. Ninguém se importava. Tinham suas gargantas e reivindicavam. Cada bairro, cada liderança, pessoas comuns, todos tinham algo a dizer. “Esse não é o nosso plano”, bradavam.

No meio do protesto uma cena intrigante mostrou bem a cara da imprensa local. O jornalista da RBS adentrou ao teatro, e, imperturbável, atravessou o corredor onde as pessoas se aglomeravam com faixas e cartazes, mostrando que ali acontecia mais um momento histórico na vida da cidade. Pois o jornalista nem olhou para a vida que se expressava no teatro lotado. Seguiu até o palco e foi lá para trás, onde estavam os dirigentes da prefeitura, protegidos pela guarda municipal. A voz do povo não haveria de sair da rede dos baixos salários, na rede da mentira. Simbiótica relação da mídia entreguista com os que querem destruir a cidade. É tudo parte de um mesmo grupo.

O povo seguiu com sua audiência. Já não havia dirigentes da prefeitura na mesa, o palco era das lideranças comunitárias. Uma assembléia popular. Democracia direta. Decidiu-se então dar seguimento a audiência pública. Foi feita uma ata e todos assinaram. Por um momento se fez uma cena mítica. No corredor, as pessoas faziam fila, assim como na missa quando vão comungar. E, para quem olhava emocionado, era isso mesmo. As gentes comungavam da mesma idéia, do mesmo desejo: proteger a cidade, garantir vida boa e bonita para todos.

Na ata, lavrada de forma coletiva, a decisão popular: “Este não é nosso plano. Não aceitamos essa imposição da prefeitura. Queremos a decisão tomada nestes três anos de encontros e participação comunitária”. O documento será registrado e enviado à prefeitura. A audiência se fez e, embora o presidente do IPUF tenha negado a palavra ao povo, o povo a tomou. E a disse.

No jornal Diário Catarinense do dia seguinte, veio a nota lacônica: confusão impede aprovação do plano diretor e ele será enviado direto para a Câmara de Vereador. Logo, segue a arrogância e a surdez do executivo municipal. A prefeitura continua fazendo de conta que não ouve a voz da população. As comunidades disseram não, mas eles não escutam. Só conseguem ouvir a voz dos que depredam e destroem. Estes sim fazem “confusão”, como diz a reportagem patética, expressão do péssimo jornalismo que é praticado pelas empresas locais.
Mas, o povo que estava ontem no TAC acredita na sua força. Vai usar a justiça, vai exigir posição do Ministério Público, acredita também na visão honesta de pessoas como a procuradora Ana Lucia Hartmann, que foi ovacionada pelas gentes a gritarem seu nome, em honra de sua postura séria e de defesa da integridade da vida. O povo se organiza e cresce em número e fortaleza. Já está marcado um protesto para este sábado, dia 20 de março, na Lagoa da Conceição. E outro, ainda maior, no dia 23 de março, dia do aniversário da cidade, em frente da Assembléia Legislativa, às seis horas da tarde. A cidade vai se movendo, o povo vai aprendendo, e as gentes fazem andar as palavras democracia e liberdade. A cidade é do povo e é ele quem tem de decidir. Não meia dúzia de empreiteiros e políticos de meia pataca.

Florianópolis pode viver uma hora histórica. É chegado o momento de todos saírem às ruas a defender a vida e o direito de se existir em harmonia com a beleza que é este lugar. Não foi sem razão que ao final do bonito momento de rebelião, as pessoas, de olhos marejados, se puseram a canta a música do Zininho, o hino da ilha: “um pedacinho de terra perdido no mar, um pedacinho de terra, beleza sem par”... E naquelas caras de gente trabalhadora, a mais absoluta certeza: esse pedacinho não está perdido, não sem luta!


terça-feira, 16 de março de 2010

Rony Martínez e o jornalismo em tempos de cólera

A experiência popular e revolucionária da Rádio Globo Honduras durante o golpe de estado vivido por aquele país foi relatada esta manhã pelo jornalista hondurenho Rony Martínez, que veio à Florianópolis a convite do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina. Rony relatou todas as peripécias vividas pelo pequeno grupo de jornalistas da Rádio Globo Honduras desde as primeiras horas da manhã do dia em que os militares seqüestraram Manuel Zelaya e usurparam o poder. “Naquele dia estávamos preparados para cobrir a festa cívica que seria o plebiscito sobre a Constituinte, mas o que encontramos foi o exército nas ruas, inclusive em frente à rádio. Nós monitoramos as demais emissoras e todas elas tratavam o domingo como um dia qualquer. Decidimos naquele momento que não faríamos isso. Passamos a transmitir contando ao povo que havia acontecido um golpe de estado”.

Segundo Rony boa parte da imprensa foi procurada pelos militares e eles chegaram a oferecer dinheiro ao diretor da rádio Globo Honduras. Mas, falou mais alto a dignidade, o patriotismo e o compromisso com a população. David Romero, veterano jornalista e comandante da equipe de jornalistas da rádio, decidiu que em primeiro lugar havia de estar o dever de bem informar o povo. Por isso, a rádio Globo Honduras jamais se rendeu e desde as primeiras horas do golpe abriu seus microfones para dizer a verdade as gentes. Não bastasse isso, os programas da rádio passaram a privilegiar a voz das pessoas comuns, que nas vilas, nas cidades, nos bairros passavam, ao vivo, as informações sobre como andava a resistência.

“Não foi à toa que nossa rádio foi invadida violentamente duas vezes pelo exército. E nas duas vezes nós fugimos, descendo por uma corda os três andares do prédio. É que já tínhamos preparado essa rota de fuga e quando eles quebraram o portão, nós escapamos pela janela. A partir daí, passamos a transmitir clandestinamente pela internet”. Mas, a internet não era suficiente e a rádio voltou a transmitir pelo dial, sempre cedendo espaço para o movimento de resistência. Segundo Rony, todos concordavam que o que havia acontecido não era uma troca constitucional de um presidente por outro, como dizia a imprensa cortesã. Não! Aquilo era um golpe e o presidente Zelaya era o presidente legítimo. Além disso, decidiram fazer valer a Constituição cujo artigo terceiro dizia: é permitido ao povo hondurenho se rebelar contra qualquer governo usurpador. E foi o que fez toda a gente, inclusive os profissionais da rádio.

Nos dias em que a rádio esteve fechada os jornalistas não ficaram calados. Uma equipe pequena, mas aguerrida, foi para frente do palácio presidencial exigir o direito de contar os fatos ao povo. Rony mostrou as fotos destes dias. Carregando cartazes feitos à mão, rabiscados com canetas coloridas, os jornalistas se postaram em frente ao prédio do governo, dizendo sua palavra. Foi um ato quase heróico naqueles dias em que a repressão baixava violentamente sobre o povo. “A gente sabia que éramos a única rádio de alcance nacional a falar sobre a resistência. Era nosso dever fazer com que aquilo continuasse. Por isso ninguém se furtou a seguir transmitindo na clandestinidade”.

Rony revela que não foi fácil viver estes meses todos na contramão da história, cercados pelo exército, premidos pela oligarquia, ameaçados, perseguidos, mas entende que desde aquele domingo do golpe os jornalistas cumpriram com seu dever patriótico. “Antes do golpe nós estávamos em terceiro lugar na audiência. Agora, a rádio é um fenômeno nacional. E tudo isso por uma coisa muito singela. Nós dizemos a verdade ao povo. E as pessoas sabem disso, e acreditam e usam a rádio como espaço para dizer a sua palavra”.

O jornalista Ronnie Huette, também de Honduras, que atuou nos dias do golpe como jornalista independente, igualmente está em Florianópolis e participou da conferência. Ele mostrou o trabalho fotográfico que realizou em Honduras e contou um pouco sobre as organizações populares que estão em luta hoje no país. Segundo ele, desde o dia do golpe as gentes hondurenhas estiveram nas ruas, marchando, se manifestando, enfrentando a polícia, coisa que não saiu nos jornais daqui nem de lá. “Por várias vezes quando a gente se sentia ameaçado enquanto fazia nosso trabalho, ligávamos por celular para a Rádio Globo Honduras e lá saia a nossa denúncia, ao vivo. Só assim nos sentíamos protegidos”.

Os dois jornalistas hondurenhos entendem que a luta em Honduras ainda segue viva. Agora, para além dos tradicionais partidos Conservador e Liberal, já se articula uma Frente Nacional de Resistência que deve entrar também no plano político eleitoral. As gentes em luta não reconhecem o governo de Pepe Lobo, consideram este um governo ilegítimo e vão seguir batalhando pela verdadeira democracia participativa. “Não queremos mais ser representados por fazendeiros, políticos a soldo, oligarquia. Não. Queremos nós mesmos decidir sobre o nosso destino”.

Sobre os perigos que enfrenta todos os dias ao dividir com David Romero a coordenação de um programa líder em audiência durante a manhã, Rony não doura a pílula. El conta que os jornalistas da Rádio Globo Honduras estão sempre sob vigilância, que sofrem ameaças constantes e que se obrigam a estar sempre em lugares públicos para evitar alguma violência. “E se a gente viaja para algum lugar ou vai para espaços menos seguros, temos de avisar ao pessoal dos direitos humanos. Nada nos garante seguir vivos, mas é uma forma de a gente se proteger”. Hoje o exército não está mais nas ruas de modo ostensivo, mas a violência segue, os assassinatos também.

Para quem veio até o CSE e viu o jovem jornalista de 25 anos defender com tanta convicção a vocação revolucionária do jornalismo, não deixou de ficar com uma pontinha de inveja. Num país onde a maioria dos escribas está soldo do capital, perdida da consciência de classe, parece cada vez mais difícil a prática daquilo que Rony definiu com bastante sensibilidade e que é o que a Rádio Globo Honduras faz: dizer a verdade ao povo.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Rony Martínez já está emFloripa



O jornalista hondurenho Rony Martínez já chegou à Florianópolis, onde participa de uma série de atividades promovidas pelo Sindicato dos Jornalistas, Pobres e Desacato. Rony fala sobre sua experiência na Rádio Globo Honduras neste dia 16, terça-feira, às 9h , no Auditório do CSE/UFSC.
Foto: Celso Martins

domingo, 14 de março de 2010

Minha casa e seus escuros

















Outro dia me assombrei com a limpeza clínica da casa de uma amiga minha. Tudo reluzia. Nenhuma rugosidade. Aquilo acendeu em mim o desejo de um lugar assim, tão imaculado. Minha pequena e velha casa de madeira parece não se prestar. E assim fui ruminando no caminho do Rio Tavares.

A noite corre solta quando chego ao Campeche. Pelo caminho de areia o estresse do ônibus vai sendo superado por conta do cheiro forte de ervas e flores, típicos daquela vereda. Ao abrir o já quebrado portão de madeira ali assoma a minha morada. No alpendre os quatro gatos esperam, impávidos, como deuses. Steve, o cachorro, mais serelepe, me pula, entre lambidas e ganidos de alegria. Suas patinhas cheias de barro e sereno borram todo o piso que eu quero limpo, tal qual o da casa da minha amiga. Impossível. Como controlar a alegria?

Dentro de casa, por mais que se faxine, ali sempre estão, imperiosas, as aranhas, a tecer suas teias, que pipocam em cada cantinho como se aquela fosse a morada das bruxas. Dia após dia. Lagartixas correm pelas paredes na divertida caçada às moscas e mosquitos. Não posso livrar-me delas. São tão belas e equilibram a fauna.

Abro as janelas e o ar do Campeche invade cada cômodo, com aquele leve cheiro de citronela e jasmim. Os gatos já entraram porta adentro e correm pela sala como se perseguissem espíritos. As abelhas, que moram na aroeira em frente ao quarto, aparecem, mas são inofensivas. Os marimbondos, cuja casinha fica no alpendre, também fazem seu cumprimento, voejando e fazendo um barulhinho peculiar. Zé Pequeno vigia esperando caçá-los.

Na lembrança da limpeza vislumbrada pego a vassoura para eliminar uma grande teia que se formou no vão da escada. Mas, ali, vejo uma pequena aranha fazendo seu trabalho milenar e lembro da fala do grande filosofo Gaston Bachelard que dizia que as sombras das casas são os espaços oníricos, lugares onde vivem os sonhos, sagrados, portanto.

Então, perdida do meu desejo da impecável limpeza baixo a vassoura e deixo que o bichinho siga seu tramar. Amanhã talvez, quando ele não mais esteja... Minha velha casinha é cheia desses pequenos lugares de sombra, espaços oníricos, talvez por isso eu ainda tenha um grande baú de sonhos, o qual abro a cada dia, escolhendo o mais luminoso para tornar real. Alguns não acontecem, e me enchem de dor, mas outros sim, se fazem... E eu sigo, com meus bichos e minhas escuridões, até que venha o grande meio dia.