terça-feira, 30 de novembro de 2010

A greve que fez Blumenau parar

Por Magali Moser - De Blumenau

O caos que se transformou o trânsito em Blumenau nos últimos dias, com a greve dos trabalhadores das empresas de ônibus, demonstra mais uma vez a necessidade e o papel fundamental do transporte coletivo urbano. O que mais se ouve é como a comunidade está sendo prejudicada com a interrupção no serviço. Mas, quando a população perceber que a greve é necessária e busca beneficiar também os usuários, vamos fortalecer ainda mais o movimento por um transporte melhor e mais barato para o povo.

A passagem de ônibus em Blumenau, hoje no valor de R$ 2,57, é a mais cara do Estado. O último aumento da tarifa foi quase o dobro da inflação de 5,39%. Nos últimos quatro anos, as tarifas aumentaram 48,2%, em média três vezes mais que os aumentos concedidos aos trabalhadores. A categoria reivindica aumento de 9,07%, tíquete refeição de R$ 260,00, equiparação salarial entre os cobradores e o direito a ter cartão ponto para marcar as horas trabalhadas. Não se trata de uma questão corporativista. Os trabalhadores denunciam a precariedade dos ônibus, alguns com até 13 anos de uso. Pela lei, o prazo máximo é de dez anos. A luta pela renovação da frota vai beneficiar diretamente os 130 mil usuários que dependem dos ônibus todos os dias. Isso mostra o compromisso com a classe trabalhadora!

Mais uma prova desse compromisso é que o Sindicato propôs a volta ao trabalho desde que a catraca fosse liberada para todos os usuários. Assim, os trabalhadores colocariam 100% da frota nas ruas, mas todos rodariam com a catraca livre. Esta seria uma forma da categoria reivindicar seus direitos e combater o principal argumento contra a greve que é prejuízo à população. Mas o comando das empresas, como era de se esperar, já rechaçou a proposta.

Ações patronais tentam fazer com que o Sindicato dos Empregados das Empresas Permissionárias do Transporte Coletivo Urbano de Blumenau e Gaspar (Sindetranscol) pague uma multa diária de R$ 20 mil se o transporte permanecer completamente paralisado, segundo determinação da juíza da 4ª Vara do Trabalho de Blumenau, Andréa Pasold. A greve é um direito do trabalhador, garantido na Constituição Federal e um recurso legítimo a que o sindicato recorre diante da intransigência dos patrões.

A disputa pelo desenvolvimento


O Instituto de Estudos Latino-Americanos realiza nestes dias 02 e 03 de dezembro um Seminário para discutir um tema que está presente na conjuntura com força total. É a idéia de desenvolvimento. Desde o início do governo de Luis Inácio, e continuando agora com Dilma, as propostas desenvolvimentistas voltaram à baila. Entender esse conceito e desvendar todos os seus matizes é fundamental para se pensar o país e a política atual.

Nesse sentido, o IELA, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), promove na UFSC uma discussão que envolve a temática do desenvolvimento e a recuperação histórica de importantes lutas dos trabalhadores brasileiros. As conferências e lançamentos de livros acontecem no Auditório do Centro Sócio-Econômico, sempre às 18h30min. Veja a programação:

A Disputa pelo Desenvolvimento

Dia 02/12/2010, às 18h30m:
POLOP e a crítica ao desenvolvimentismo

Local: Auditório do CSE.
Palestrante: Ceici Kameyama, do Centro de Estudos Victor Meyer.

Lançamento dos livros
Sobre o Fascismo, de August Talheimer;
Curso Básico da ORM – PO (Organização Revolucionária Marxista Política Operária)
POLOP: Uma trajetória de luta pela organização independente da classe operária no Brasil

Dia 03/12/2010, às 18h30m:
Os anos Lula (2003 - 2010)

Local: Auditório do CSE,
Palestrante: Paulo Passarinho, do CORECON – RJ e do Programa Faixa Livre, da rádio Band.

Lançamento do livro
Os Anos Lula: Contribuições para um balanço crítico (2003 – 2010)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Jornalismo desonesto

Vale a pena ler o texto do jornalista Gustavo Barreto, publicado no Consciência Net. Uma visão certeira do jornalismo e o caso da violência no Rio de Janeiro.




terça-feira, 23 de novembro de 2010

Importante esclarecimento

Vice-presidente da Casa da Criança ligou para informar que o agressor da noite de violência na UFSC não é mais professor da ONG, que realiza importante trabalho com crianças de comunidades empobrecidas. Ele ali cumpriu tarefas no ano de 2006 como professor de educação física e, segundo o vice-presidente, fez um belo trabalho com as crianças. Pena que tenha protagonizado as tristes cenas no campus. De qualquer forma, a Casa da Criança está atenta e sente-se entristecida de se ver envolvida neste episódio. As informações trazidas por este blog foram fornecidas pelos estudantes envolvidos que pegaram os nomes no boletim de ocorrência.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Quem é teu advogado?


A impunidade no Brasil para aqueles que têm dinheiro e podem pagar bons advogados está tornando a violência gratuita uma coisa bastante comum entre os jovens da classe média alta. Os casos de avolumam e os resultados práticos só fortalecem a idéia de que eles podem fazer tudo, que nada de mal vai lhes acontecer. Entediados com suas vidinhas boas, esses garotos saem por aí dando “porrada” em qualquer um que lhes apareça na frente. Na última semana foi bastante falada a agressão de um grupo de jovens contra homossexuais em São Paulo. Tudo violência bárbara, gratuita, ao melhor estilo “laranja mecânica”. Em Florianópolis já tivemos o caso do garoto menor de idade, filho de gente rica, que estuprou uma menina com requintes de crueldade e saiu livrinho da silva, pagando pena comunitária, que ninguém sabe exatamente qual é. Ou seja: impune.

Outro dia, duas garotas foram agredidas de maneira selvagem por um jovem estudante de medicina numa casa noturna da cidade, a Vecchio Giorgio, na Lagoa da Conceição. Uma delas teve a testa afundada por um soco. O cara só foi parar na polícia porque um policial civil estava no bar e impediu que o dono da casa livrasse a cara do agressor. Ainda assim, não foi lavrado flagrante e o cara foi liberado. Nunca vai prestar contas deste ato.

E, na semana passada, dentro do Campus da Universidade Federal, dois estudantes e um professor - Vinicius de Mendonça (odonto), Luiz Felipe Prazeres (professor) e Daniel Bernardo de Souza Alves - bateram covardemente num garoto que vinha tranquilamente de bicicleta para uma comemoração depois da vitória no DCE. Eles só foram pegos porque, vistos pelos companheiros do garoto, tentaram fugir num carro e foram apedrejados. Então, os agressores também foram para o hospital onde já estava o garoto agredido. Os amigos reconheceram os dois e chamaram a polícia. Um deles é aluno da Odontologia. Outro disse atuar numa entidade como educador, o que parece ainda mais paradoxal. O que ensinará este jovem?

Para os agredidos fica uma perplexidade. As pessoas andam por aí batendo nas pessoas, cometendo atos de selvageria e nada acontece. Basta que apareça um bom advogado e lá estão eles fora da prisão, coisa que não acontece com os pobres, negros ou os identificados como “marginais” simplesmente por sua aparência.

Então, a gente vê na televisão os psicólogos, antropólogos e outros tantos estudiosos da violência falando sobre o que acontece com essa gente saciada que agora decidiu praticar seus atos de violência às claras, sem medo de nada. Porque é obvio que essas violências sempre aconteceram em todas as classes sociais, apenas que até pouco tempo os chamados “bem-nascidos” não andavam por aí à luz do dia batendo na cara das pessoas com lâmpadas. Agora eles fazem isso sem pudor. Mas, já se parou para pensar no que está para além das aparências? Será isso apenas uma patologia passageira e passível de cura?

Defendo a tese de que não, não é passageiro e não é uma doença do sistema. É, ao contrário, a natureza do sistema capitalista se explicitando, mostrando mais uma face de violência e exploração contra os sem poder. Essa agressão se dá no momento em que um capitalista suga a mais-valia de um trabalhador, quando a acumulação de riqueza faz com que um tenha muito e a maioria não tenha condições nem de reproduzir a sua vida. Essa violência aparece nas regras de produção que matam e adoecem milhões de pessoas todos os dias nas grandes fábricas e indústrias. E chega ao ápice quando sai do círculo produtivo e passa para a vida fora do trabalho. Como é o caso dos garotos riquinhos que queimam índios, que batem em mulheres negras e pobres porque julgaram ser uma “prostituta”. Ou seja, essa classe de gente nasce e cresce dentro de um ambiente em que se configura coisa normal explorar e violentar as gentes, ainda que seja na lógica produtiva do capital. Então, fazer isso no dia-a-dia não deve lhes parecer errado.

Tem um filme de terror muito conhecido que se chama “O Albergue”, e mostra como os ricos pagam fortunas para irem até uma cidade perdida de algum lugar no leste europeu (é óbvio) praticar um esporte radical: matar pessoas com requintes de crueldade. Um esporte, uma brincadeira, um passatempo divertido. É a metáfora perfeita destes tempos da fase tardia do capitalismo. Aos ricos, tudo! Mesmo no tal do estado de direito. Afinal, têm os advogados e dinheiro...

domingo, 21 de novembro de 2010

Do fundo do baú!!!

Do inesquecível Orlando Silva.. Sertaneja.. uma das belezas do nosso cancioneiro!!! Saudade destas vozes e destas letras de puro lirismo....


sábado, 20 de novembro de 2010

Sou negro


O cinema já imortalizou esta cena. Zumbi dos Palmares, resistindo até o último momento, no alto da Serra da Barriga, comandando mais de 50 mil almas, preferindo a morte digna que a rendição. Não sem razão que esta passou a ser a principal figura do panteão de heróis do povo negro. E haveria de ter muitos e tantos, sem nome ou rosto, que enfrentaram a escravidão nestas terras tropicais, trazidos, como bichos, nos navios negreiros ingleses, sustentando a economia daquele país que viria a ser um império.

Pois foi com os braços de homens e mulheres negros que os lordes garantiram a revolução industrial e a consolidação do sistema capitalista. Só o braço escravo, já bem contou Eric Williams, daria conta da colonização baseada na monocultura extensiva. Mas essa gente valente, que foi sequestrada de suas terras, nunca se rendeu. A liberdade era seu horizonte e tão logo escapavam das correntes criavam quilombos, comunidades livres, solidárias, auto-gestionadas. A maior delas: Palmares. E é em honra a esse povo, com Zubi à frente, que no dia 20 de novembro, se celebra o Dia da Consciência Negra.

A data não é uma lembrança ritual de um tempo que já passou. Ela é a ferida aberta de uma sociedade que segue vivenciando os pressupostos do tempo da escravidão, mergulhada no racismo e na discriminação. Basta ver o que aconteceu agora, no período eleitoral, com as manifestações raivosas contra os nordestinos. Por isso que é preciso lembrar, e lembrar, e lembrar o que resultou de todo o processo escravista nestas terras brasilis.

Desde quando os portugueses decidiram apostar na mão-de-obra escrava aqui, nas novas terras, foi necessário consolidar uma ideologia que respaldasse o absurdo. Era mais do que óbvio que a elite colonial não haveria de espalhar aos quatro cantos que esta era uma medida “econômica” necessária para garantir seus lucros. O melhor foi então criar a idéia de que os negros eram de uma raça inferior, tal qual os índios, gente de segunda classe aos quais não faria diferença ser escravizado. Ou melhor. Era natural que o fossem. E então foi só repetir, e repetir, e repetir. A coisa pegou. E tanto, que passados 300 anos de escravidão, até mesmo os escravos – pessoas das gerações que se seguiram e que nunca haviam conhecido a liberdade – acreditaram nisso.

Depois, com o fim do regime escravista, uma vez que já estava garantida acumulação do capital das famílias coloniais, a ideologia seguiu fazendo seus estragos. Os negros libertos ficaram ao léu. Não havia política para inclusão de toda uma multidão de gente que, de repente, se via livre. Muitos, já velhos, não tinham como vender a sua força de trabalho e perambulavam pelas ruas, a mendigar. Ao que o sistema acrescentou novos adjetivos: preguiçosos, vagabundos, marginais. Nas grandes cidades eles foram se encravando nos morros, buscando um canto para morar, já que o Estado lhes abandonava.

E então, como não havia como eliminar a presença do negro na vida nacional, uma vez que aqui eram milhões, a elite decidiu que era preciso “embranquecer” o país, já que, conforme sustentavam os ideólogos de plantão, a raça negra haveria de constituir sempre um dos fatores da inferioridade do país. Ou seja, depois de terem usado do braço negro para forjar suas riquezas, a elite os considera causa da desgraça nacional. Cínismo pouco é bobagem.

Desde então, sociólogos, antropólogos e cientistas sociais se debruçam sobre aquilo que chamaram e ainda chamam de “problema do negro”, buscando refletir os elementos do racismo e do preconceito. Diante desta diferenciada forma de capitulação ideológica, o sociólogo Guerreiro Ramos vai apontar sua metralhadora verbal. “Por que o negro é um problema? O que o faz ser um problema? Uma condição humana só é elevada a condição de problema quando não se coaduna com um ideal, um valor, uma norma. Se se rotula `problema´ao negro é porque ele é anormal. O que torna problemática a situação do negro é que ele tem a pele escura. Essa parece ser a anormalidade a sanar”. Ramos lembra que foi a superioridade européia no processo de colonização que criou estas manifestações - as quais chama de “patológicas” – de que o padrão estético dito normal e bonito só pode ser o branco. “ É uma tremenda alienação que não leva em conta a realidade local. Nossa país é um país de negros”.

Guerreiro Ramos argumenta que enquanto os estudiosos brasileiros não se libertarem da visão eurocêntrica da qual são cativos, muito pouco se poderá dizer sobre o racismo e a discriminação do negro no país. Os autores mais incensados, como Gilberto Freire e Nina Rodrigues, por exemplo, viam o negro como o exótico, o problemático, o não-Brasil. Euclides da Cunha acreditava que a fusão das raças era prejudicial e que o mestiço era um decaído, embora pudesse transcender e ser salvo pela civilização. Era uma espécie de tese de “embranquecimento” pela inclusão na vida nacional. Oliveira Viana chegou a dizer que a inferioridade seria passageira porque a tendência seria, pela mestiçagem, embranquecer.

Na tese defendida por Guerreiro Ramos a saída é a afirmação cotidiana da condição de negro, “niger sum”, pelo seu significado dialético numa sociedade em que todos parecem querer ser brancos por força da ideologia. “Sou negro, identifico como meu o corpo em que está o meu eu e considero minha condição ética como um dos suportes do meu orgulho pessoal”. Ele também defendeu, durante toda a vida, de que era necessário tirar do próprio negro a idéia de que havia um “problema do negro”. “O negro no Brasil é povo, o negro não é um componente estranho da nossa demografia”.

Hoje, o movimento negro atuante no Brasil tem trabalhado bastante essa tese, de afirmação cotidiana, mas não é fácil desfazer séculos de ideologia. Além do que é também possível encontrar entre algunas ONGs a idéia de que para o negro valem as políticas pobres como aquelas que, com dinheiro de fundações estrangeiras - como Ford, a Kellogs e outras que são inclusive responsáveis pela condição econômica de periferia de nossa gente - promovem cursos de cabelereira para mulheres negras e de garção para homens negros, como se a eles só pudessem ser garantidas estas profissões.

As cotas nas universidades avançaram em muito a dialetização da questão racial no Brasil, tanto que o racismo vivo e fulgurante se manifestou de várias maneiras, inclusive com estudantes brancos entrando na Justiça contra elas, como se as cotas já não fossem uma realidade nas universidades. Só que as cotas que existiam até então eram para os estudantes com cursinho particular, os nascido em berço explêndido e estes não admitiam “repartir” a vida universitária com estes que muitos ainda consideram “inferiores”, justificando a cristalização da ideologia implantada nos tempos coloniais.

Também o sistema capitalista é pródigo em cooptar as idéias e bandeiras do movimento negro, transformando em produto a idéia de afirmação racial, como se pode notar nas revistas especializadas que acabam dando destaque ao negro, mas sempre dentro dos padrões capitalistas, de consumo e de estética.

Por isso a lembrança de Zumbi é tão desconfortável, e não foi sem razão que, em Florianópolis, tenha sido recusada pela Câmara de Vereadores a proposta de um feriado no Dia da Consciência Negra. Porque quando se fala de Zumbi dos Palmares, se fala de outro modo de organizar a vida, auto-gestionada, cooperativa, solidária, comunitária, outros padrões de beleza e de relação com as coisas. Quando se fala em Zumbia se fala de luta aguerrida, armada, rebelde. Porque na sua história de líder de Palmares, Zumbi recusou a rendição, a composição de classe, a capitulação. Ele foi até o fim na proposição /niger sum/ (sou negro), e para a elite branca e racista isso pode se configurar num “mau explemplo”. Melhor encobrir ou ainda, tornar um produto.

De qualquer forma aí está o Dia da Consciência Negra nos interpelando, fazendo pensar que ainda há muito caminho a percorrer na destruição da ideologia racista inoculada desde os tempos coloniais.

Que viva Zumbi e que viva a idéia poderosa da afirmação de Guerreiro Ramos: Sou negro, sou povo brasileiro!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Zumbi vive


Foi assim, andando sem rumo pelo centro da cidade, eu vi Zumbi. Estava em frente ao McDonalds da Deodoro, encostado na parede, olhando fixo para outros adolescentes como ele, que se empanturravam de Big Mac. Era um guri de uns 17 anos, com um tênis que parecia maior que o pé, magro, calça jeans caída deixando aparecer um fio da cueca e o abdômen bem torneado. O rosto luzia como o de um deus. Impassível, com um pé na parede, ele observava. Não havia ódio, nem raiva no rosto de barba rala, a qual cofiava, pensativo. Talvez um enfado. Nas mesinhas, a gordurosa comida se misturava aos risos dos “bem nascidos”. E ele ali, Zumbi, olhando, soberbo.

Então, como pressentindo que algo muito esperado vinha, ele enfim desviou o olhar do grupo ruidoso. E pela direita surgiu a princesa, Dandara, eu presumo. Gigante, luzidia, caminhava como se estivesse nas nuvens, apesar do salto 10. Poderosa, impressionante, num vestido amarelo ouro que lhe realçava as formas de bronze. Os brincos enormes balançavam brilhantes e ela abriu um sorriso de pérola quando viu o garoto, agora com o rosto suavizado pela visão do paraíso. Na mesa do McDonalds, todo mundo parou para vê-la chegar, era por demais luminosa.

Ela chegou e lhe sussurrou algo. Ele riu largo e olhou para as mesinhas. Ela jogou a cabeça para trás e estufou o peito como a dizer, “vamo-nos”. E saíram pela rua, de mãos dadas, vez ou outra olhando um nos olhos do outro. Ela lhe afagou o cabelo, ele maneou a cabeça, ela lhe tocou a boca com a orelha, ele assentiu. Então, pararam em frente ao carrinho de água de coco. Ela sorveu com gosto a água amarguinha. Ele acompanhou. Ela olhou com mofa para o McDonalds, ele abriu outra fieira de pérolas. E dividiram o coco, um e outro, lambendo o mesmo canudo. Zumbi e Dandara, dois negros de hoje, defendendo suas barricadas. Cá fora assomam os exércitos, os Domingos Velho, a cultura do consumo e da colonização mental. E eles ali, na água de coco, resistindo e rindo-se dos burgueses, como reis do quilombo.

Encheram-me de ternura aqueles dois, e me fizeram ver que a resistência negra aí está, todos os dias, na rua, na cidade, abrindo veredas, a despeito do racismo e do preconceito. E se foram eles pelo mercado afora, deixando um rastro de beleza na rua e em mim.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Tomando o céu por assalto - El Salvador e a luta da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional


El Salvador é um país da América Central com apenas 21.040,79 km. Faz limite com Honduras, Guatemala e Oceano Pacífico. Seu pequeno território inclui ainda nove ilhas e o golfo de Fonseca, abrigando pouco mais de seis milhões de almas. O que é hoje um país dependente, antes da chegada dos espanhóis abrigava duas importantes civilizações: os pipiles, que tinham seu centro em Cuzcatlán e os maias, na parte ocidental. Estes dois povos tinham uma cultura bastante avançada, conheciam a astronomia, a arquitetura e a escrita baseada em desenhos.

Os espanhóis apareceram por aquelas terras no ano de 1524, comandados por Pedro Alvarado que venceu os pipiles e fundou a cidade de San Salvador, para apagar da memória a linda Cuzcatlán. Desde então, o processo de extermínio das comunidades autóctones seguiu como em toda a América Latina, e instalou-se a colônia. Ainda assim, a cidade fundada por Alvarado teve um protagonismo importante na luta pela independência da região. Quando por todo o continente clamavam as vozes de libertação, em 1811, um padre de nome José Matias Delgado levantou o povo em armas. Foi derrotado mas plantou uma semente que nunca mais haveria de deixar de germinar.

Tanto que quando a Guatemala se fez livre em 1821 e anexou El Salvador ao seu território, os movimentos por liberdade não cessaram. Durante muitos anos a região fez parte das Províncias Unidas da América Central (com Guatemala, Honduras, Nicarágua e Costa Rica). Mas, em 1841, finalmente El Salvador tornou-se república independente.

Esta condição não foi coisa fácil e por 40 anos o país viveu inúmeros conflitos entre as forças conservadoras e liberais. Foi só no início do século XX que os conservadores venceram a queda de braço e governaram o país por décadas, sempre escolhendo seus sucessores sem se importar em consultar a população. El Salvador era como uma grande fazenda, na qual as gentes eram apenas um detalhe. Ditadores eram coisa comum no país.

Mas esta face da opressão e violência contrastava com o desejo de liberdade que seguia vivo na população e eram as revoltas populares que faziam avançar direitos no país. Apesar da mão firme dos dirigentes militares, o povo se insurgia vez ou outra e o Partido Comunista era uma das poucas instituições a travar a luta por democracia e autoderminação.

Nos anos 60, quando toda a América Latina caiu sob as ditaduras militares, El Salvador já era “useira e vezeira” desta prática. Ainda assim, naqueles anos os partidos de esquerda foram colocados na ilegalidade. Mais de 300 mil pessoas sairam do país, fugindo da miséria e da opressão. Quando os anos 70 chegaram, a luta interna exigia medidas mais radicais e é aí que nascem as Forças Populares de Libertação “Farabundo Martí”, o Partido da Revolução Salvadorenha, que ficou conhecido como o Exército Revolucionário do Povo, a Resistência Nacional e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores Centroamericanos. O país vivia uma efervescência popular que ficou ainda mais forte com o triunfo da revolução sandinista, na vizinha Nicarágua, em 1975. Vários focos guerrilheiros floresciam no país.

A experiência nicaraguense levou a um processo de unificação da esquerda que constitui a Coordenadora Político Militar, juntando várias instituições. No campo político nasce, nos anos 80, a Frente Democrática Salvadorenha, disposta a jogar no campo eleitoral, dentro das regras da democracia liberal. Mas, essa experiência não dura mais do que 17 dias e as entidades percebem a necessidade de se preparar a investida armada conjunta, por isso também é criada a Frente Democrática Revolucionária. A luta se acirra em todo o país contra o governo de corte autoritário e direitista. Em março de 1980, nem mesmo o bipo da igreja católica Dom Oscar Romero é poupado. Por ajudar os pobres e defender os guerrilheiros era muito mal visto pelo poder, o que levou ao seu assassinato, em plena missa, quando rezava junto com seus fiéis.

A morte de Romero acelerou a junção da esquerda, que atuava em focos separados. Assim, no dia 10 de outubro de 1980, a união de três grandes entidades de esquerda dá vida à Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional com o seguinte manifesto: haverá somente uma direção, um só plano militar, um só comando e uma só linha política. Diante disso, os Estados Unidos passou a ajudar o governo salvadorenho, pois havia que derrubar qualquer outra tentativa de libertação na América Central. Começa então uma guerra sem quartel. O governo é cada vez mais duro, usando todas as armas do terror contra a população camponesa. As gentes resistem em frentes de luta organizada.

A guerra civil em El Salvador durou longos 10 anos, ceifou mais de 75 mil vidas, e as forças revolucionárias não lograram vencer. A ajuda militar estadunidense que fincou pé na região para destruir os sandinistas, acabou por atuar também no país, levando a FMLN a assinar um acordo de paz em 1991, sob a mediação da ONU e hoje a Frente é partido político integrado á vida institucional salvadorenha.

Mas é na década de luta guerrilheira da brava gente salvadorenha que nasce a Rádio Venceremos, inspirada na histórica Rádio Rebelde criada por Che Guevara na Cuba revolucionária. Esta emissora, transmitindo nas condições mais adversas, no meio da mata, conseguiu ao longo de todo o processo revolucionário ser uma referência de luta e organização do povo alçado em rebelião. Hoje, a memória daqueles dias de bravura e esperança está registrada no Museu da Palavra e da Imagem. Um dos fundadores da rádio, o venezuelano radicado em El Salvador, Carlos Henríquez Consalvi, que hoje comanda o museu, conseguiu recuperar um vídeo que conta como atuavam os comunicadores populares durante a marcha pela liberdade.

O documentário emociona ao mostrar homens e mulheres na valente tarefa de difundiar informações desde a selva, sem qualquer possibilidade técnica, apenas com a férrea vontade de mudar o mundo. As caras de alegria de cada um dos que ali protagonizaram a história do povo salvadorenho são e uma ternura abissal. E mostram como é possível fazer comunicação quando o que está na frente é um sonho possível de vida digna e riquezas repartidas. Tomando o céu por assalto, estas gentes salvadorenhas nos ensinam o caminho. Vale a pena ver.

http://www.tal.tv/es/webtv/video.asp?house=P001483&video=10-ANOS-TOMANDO-EL-CIELO-POR-ASALTO

domingo, 14 de novembro de 2010

Puxada de Cavalo

Cerca de 15 pessoas mantém uma vigília na entrada de Ribeirão Souto, em Pomerode , Santa Catarina, em protesto contra a chamada "puxada de cavalo". Nesta "brincadeira", a comunidade obriga os cavalos a puxarem mais de duas toneladas, num longo e doloroso processo de tortura. No ano passado várias pessoas foram agredidas e este ano os manifestantes contam com a proteção da polícia militar.
Neste momento, as pessoas estão cerca de dois quilômetros do local onde acontece a "puxada". O pessoal da comunidade está armado com ovos podres e bosta de cavalo para jogar em quem se aproximar com o que eles chamam de discurso de "ecochato". Segundo os manifestantes a tortura aos cavalos nem pode ser chamada de "tradição" pois faz apenas pouco mais de uma década que a "brincadeira" acontece. Ainda há muita estrada para trilhar na defesa dos animais.
Nietzsche, no final da vida, teve um momento de profunda tristeza quando viu um cavalo ser espancado pelo seu dono. Agarrou-se ao animal e chorou por muito tempo, impotente diante do arbítrio. Hoje, já é possível fazer mais do que chorar. Os animais estão aí para serem cuidados pelos humanos. Basta de tortura!
Lá em Pomerode, poucas mas comprometidas pessoas, fazem a sua parte.

sábado, 13 de novembro de 2010

Dois anjinhos...

Duas lindas moradoras novas: Anita e Manuelita. Quem pode aguentar essas carinhas???



sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Liberdade de expressão: uma armadilha para pegar quem?


O velho Marx já ensinou a muitos anos sobre o que é a ideologia. É o encobrimento da verdade. Assim, tudo aquilo que esconde, vela, obscurece, tapa, encobre, engana, é ideologia. É dentro deste espectro que podemos colocar o debate que se faz hoje no Brasil, na Venezuela, no Equador e na Bolívia sobre o binômio “liberdade de expressão X censura”. Para discutir esse tema é preciso antes de mais nada observar de onde partem os gritos de “censura, censura”, porque na sociedade capitalista toda e qualquer questão precisa ser analisada sob o aspecto de classe. A tal da “democracia”, tão bendita por toda a gente, precisa ela mesma de um adjetivo, como bem já ensinou Lênin. “Democracia para quem? Para que classe?”.

Na Venezuela a questão da liberdade de expressão entrou com mais força no imaginário das gentes quando o governo decidiu cassar a outorga de uma emissora de televisão, a RCTV, por esta se negar terminantemente a cumprir a lei, discutida e votada democraticamente pela população e pela Assembléia Nacional. “Censura, cerceamento da liberdade de expressão” foram os conceitos usados pelos donos da emissora para “denunciar” a ação governamental. Os empresários eram entrevistados pela CNN e suas emissoras amigas, de toda América Latina, iam reproduzindo a fala dos poderosos donos da RCTV. Transformados em vítimas da censura, eles foram inclusive convidados para palestras e outros quetais aqui nas terras tupiniquins.

Lá na Venezuela os organismos de classe dos jornalistas, totalmente submetidos à razão empresarial, também gritavam “censura, censura” e faziam coro com as entidades de donos de empresas de comunicação internacionais sobre o “absurdo” de haver um governo que fazia cumprir a lei. Claro que pouquíssimos jornais e jornalistas conseguiram passar a informação correta sobre o caso, explicando a lei, e mostrando que os que se faziam de vítima, na verdade eram os que burlavam as regras e não respeitavam a vontade popular e política. Ou seja, os arautos da “democracia liberal” não queriam respeitar as instituições da sua democracia. O que significa que quando a democracia que eles desenham se volta contra eles, já não é mais democracia. Aí é ditadura e cerceamento da liberdade de expressão.

No Brasil, a questão da censura voltou à baila agora com o debate sobre os Conselhos de Comunicação. Mesma coisa. A “democracia liberal” consente que existam conselhos de saúde, de educação, de segurança, etc... Mas, de comunicação não pode. Por quê? Porque cerceia a liberdade de expressão. Cabe perguntar. De quem? Os grandes meios de comunicação comercial no Brasil praticam a censura, todos os dias, sistematicamente. Eles escondem os fatos relacionados a movimentos sociais, lutas populares, povos indígenas, enfim, as maiorias exploradas. Estas só aparecem nas páginas dos jornais ou na TV na seção de polícia ou quando são vítimas de alguma tragédia. No demais são esquecidas, escondidas, impedidas de dizerem a sua palavra criadora. E quando a sociedade organizada quer discutir sobre o que sai na TV, que é uma concessão pública, aí essa atitude “absurda” vira um grande risco de censura e de acabar com a liberdade de expressão. Bueno, ao povo que não consegue se informar pelos meios, porque estes censuram as visões diferentes das suas, basta observar quem está falando, quem é contra os conselhos. De que classe eles são. Do grupo dos dominantes, ou dos dominados?

Agora, na Bolívia, ocorre a mesma coisa com relação à recém aprovada lei anti-racista. Basta uma olhada rápida nos grandes jornais de La Paz e lá está a elite branca a gritar: “censura, censura”. A Sociedade Interamericana de Imprensa, que representa os empresários, fala em cerceamento da liberdade de expressão. Os grêmios de jornalistas, também alinhados com os patrões falam a mesma coisa, assim como as entidades que representam o poder branco, colonial e racista. Estes mesmos atores sociais que ao longo de 500 anos censuraram a voz e a realidade indígena e negra nos seus veículos de comunicação, agora vem falar de censura. E clamam contra suas próprias instituições. A lei anti-racista prevê que os meios de comunicação que incentivarem pensamentos e ações racistas poderão ser multados ou fechados. Onde está o “absurdo” aí? Qual é o cerceamento da liberdade de expressão se a própria idéia de liberdade, tão cara aos liberais, se remete à máxima: “a minha liberdade vai até onde começa a do outro”? Então, como podem achar que é cerceamento da liberdade de expressão usar do famoso “contrato social” que garante respeito às diferenças?

Ora, toda essa gritaria dos grandes empresários da comunicação e seus capachos nada mais é do que o profundo medo que todos têm da opinião pública esclarecida. Eles querem o direito de continuar a vomitar ideologia nos seus veículos, escondendo a voz das maiorias, obscurecendo a realidade, tapando a verdade. Eles querem ter o exclusivo direito de decidir quem aparece na televisão e qual o discurso é válido. Eles querem manter intacto seu poder escravista, racista e colonial que continua se expressando como se não tivessem passado 500 anos e a democracia avançado nas suas adjetivações. Hoje, na América Latina, já não há apenas a democracia liberal, há a democracia participativa, protagônica, o nacionalismo popular. As coisas estão mudando e as elites necrosadas se recusam a ver.

O racismo é construção de quem domina

Discursos como esses, das elites latino-americanas e seus capachos, podem muito bem ser explicados pela história. Os componentes de racismo, discriminação e medo da opinião pública esclarecida têm suas raízes na dominação de classe. Para pensar essa nossa América Latina um bom trabalho é o do escritor Eric Williams, nascido e criado na ilha caribenha de Trinidad Tobago, epicentro da escravidão desde a invasão destas terras orientais pelos europeus. No seu livro Capitalismo e Escravidão, ele mostra claramente que o processo de escravidão não esteve restrito apenas ao negro. Tão logo os europeus chegaram ao que chamaram de Índias Orientais, os primeiros braços que trataram de escravizar foram os dos índios.

Os europeus buscavam as Índias e encontraram uma terra nova. Não entendiam a língua, não queriam saber de colonização. Tudo o que buscavam era o ouro. Foi fácil então usar da legitimação filosófica do velho conceito grego que ensinava ser apenas “o igual”, “o mesmo”, aquele que devia ser respeitado. Se a gente originária não era igual à européia, logo, não tinha alma, era uma coisa, e podia ser usada como mão de obra escrava para encontrar as riquezas com as quais sonhavam. Simples assim. Essa foi a ideologia que comandou a invasão e seguiu se sustentando ao longo destes 500 anos. Por isso é tão difícil ao branco boliviano aceitar que os povos originários possam ter direitos. Daí essa perplexidade diante do fato de que, agora, por conta de uma lei, eles não poderão mais expressar sua ideologia racista, que nada mais fez e ainda faz, que sustentar um sistema de produção baseado na exploração daquele que não é igual.

Eric Williams vai contar ainda como a Inglaterra construiu sua riqueza a partir do tráfico de gente branca e negra, para as novas terras, a serem usadas como braço forte na produção do açúcar, do tabaco, do algodão e do café. Como o índio não se prestou ao jogo da escravidão, lutando, fugindo, morrendo por conta das doenças e até se matando, o sistema capitalista emergente precisava inventar uma saída para a exploração da vastidão que havia encontrado. A escravidão foi uma instituição econômica criada para produzir a riqueza da Inglaterra e, de quebra, dos demais países coloniais. Só ela seria capaz de dar conta da produção em grande escala, em grandes extensões de terra. Não estava em questão se o negro era inferior ou superior. Eram braços, e não eram iguais, logo, passíveis de dominação. Eles foram roubados da África para trabalhar a terra roubada dos originários de Abya Yala.

Também os brancos pobres dos países europeus vieram para as Américas como servos sob contrato, o que era, na prática, escravidão. Segundo Williams, de 1654 a 1685, mais de 10 mil pessoas nestas condições partiram somente da cidade de Bristol, na Inglaterra, para servir a algum senhor no Caribe. Conta ainda que na civilizada terra dos lordes também eram comuns os raptos de mulheres, crianças e jovens, depois vendidos como servos. Uma fonte segura de dinheiro. De qualquer forma, estas ações não davam conta do trabalho gigantesco que estava por ser feito no novo mundo, e é aí que entra a África. Para os negociantes de gente, a África era terra sem lei e lá haveria de ter milhões de braços para serem roubados sem que alguém se importasse. E assim foi. Milhões vieram para a América Latina e foram esses, juntamente com os índios e os brancos pobres, que ergueram o modo de produção capitalista, garantiram a acumulação do capital e produziram a riqueza dos que hoje são chamados de “países ricos”.

E justamente porque essa gente foi a responsável pela acumulação de riqueza de alguns que era preciso consolidar uma ideologia de discriminação, para que se mantivesse sob controle a dominação. Daí o discurso – sistematicamente repetido na escola, na família, nos meios de comunicação – de que o índio é preguiçoso, o negro é inferior e o pobre é incapaz. Assim, se isso começa a mudar, a elite opressora sabe que o seu mundo pode ruir.

Liberdade de expressão

É por conta da necessidade de manter forte a ideologia que garante a dominação que as elites latino-americanas tremem de medo quando a “liberdade de expressão” se volta contra elas. Esse conceito liberal só tem valor se for exercido pelos que mandam e aí voltamos àquilo que já escrevi lá em cima. Quando aqueles que os dominadores consideram “não-seres” - os pobres, os negros, os índios – começam a se unir e a construir outro conceito de direito, de modo de organizar a vida, de comunicação, então se pode ouvir os gritos de “censura, censura, censura” e a ladainha do risco de se extinguir a liberdade de expressão.

O que precisa ficar bem claro a todas as gentes é de que está em andamento na América Latina uma transformação. Por aqui, os povos originários, os movimentos populares organizados, estão constituindo outras formas de viver, para além dos velhos conceitos europeus que dominaram as mentes até então. Depois de 500 anos amordaçados pela “censura” dos dominadores, os oprimidos começam a conhecer sua própria história, descobrir seus heróis, destapar sua caminhada de valentia e resistência. Nomes como Tupac Amaru, Juana Azurduy, Zumbi dos Palmares, Guaicapuru, Bartolina Sisa, Tupac Catari, Sepé Tiaraju, Dandara, Artigas, Chica Pelega, assomam, ocupam seu espaço no imaginário popular e provocam a mudança necessária.

Conceitos como Sumak kawsay, dos Quíchua equatorianos, ou o Teko Porã, dos Guarani, traduzem um jeito de viver que é bem diferente do modo de produção capitalista baseado na exploração, na competição, no individualismo. O chamado “bem viver” pressupõe uma relação verdadeiramente harmônica e equilibrada com a natureza, está sustentado na cooperação e na proposta coletiva de organização da vida. Estes são conceitos poderosos e “perigosos”. Por isso, os meios de comunicação não podem ficar à mercê dos desejos populares. Essas idéias “perigosas” poderiam começar a aparecer num espaço onde elas estão terminantemente proibidas. É esse modo de pensar que tem sido sistematicamente censurado pelos meios de comunicação. Porque as elites sabem que destruída e ideologia da discriminação contra o diferente e esclarecida a opinião pública, o mundo que construíram pode começar a ruir. A verdadeira liberdade de expressão é coisa que precisa ficar bem escondida, por isso são tão altos os gritos que dizem que ela pode se acabar se as gentes começarem a “meter o bedelho” neste negócio que prospera há 500 anos.

Basta de bobagens

É neste contexto histórico, econômico e político que deveriam ser analisados os fatos que ocorrem hoje na Venezuela, no Equador, na Bolívia e na Argentina. O Brasil deveria, não copiar o que lá as gentes construíram na sua caminhada histórica, mas compreender e perceber que é possível estabelecer aqui também um processo de mudança. Neste mês de novembro o Ministério das Comunicações chamou um seminário para discutir uma possível lei de regulamentação da mídia brasileira. Não foi sem razão que os convidados eram de Portugal, Espanha e Estados Unidos. Exemplos de um mundo distante, envelhecido, necrosado, representantes de um capitalismo moribundo. As revolucionárias, criativas e inovadoras contribuições dos países vizinhos não foram mencionadas. A Venezuela tem uma das leis mais interessantes de regulamentação da rádio e TV, a Argentina deu um passo adiante com a contribuição do movimento popular, a Bolívia avança contra o racismo, o Equador inova na sua Constituição, e por aqui tudo é silêncio. Censura?

Os governantes insistem em buscar luz onde reina a obscuridade. E, ainda assim pode-se ouvir o grito dos empresários a dizer: censura, censura, censura. O atraso brasileiro é tão grande que mesmo as liberais regulamentações européias são avançadas demais. Enquanto isso Abya Yala caminha, rasgando os véus...

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Com a Rosa dos Ventos


Tem dias em que eu sinto o cheiro ruim. A universidade, às vezes, é podre. Conservadora, reacionária, colonizada. Mas tem dias que ela é pura claridão, com gente alegre, que pensa, que olha o mundo com lentes críticas, que estuda, que compreende, que gargalha, que compenetra. Gosto de andar pelos corredores a sentir essa energia que vem de tantos pontos. Vem do norte, do sul, do leste, do oeste. No meio da mediocridade, a flor.

Ontem, no meio da tarde de uma primavera/verão, com jeitinho de inverno, uma grande rosa girou em frente ao CSE. Era a rosa dos ventos, proposta bonita para o DCE da UFSC. Nada mais necessário. Uma flor, que gira, mas que tem direção. Instrumento de orientação, certeza de precisão, garantia de chegada e com exatidão. Rosa de vento, rosa de riso, rosa de saberes, rosa de comunhão.

Eu conheço aquelas caras, as vejo todos os dias entre livros, teorias, dúvidas, certezas e esperanças. As vejo nos debates, nas ruas, nas lutas, na biblioteca, nos CAs, nas salas de aula. As escuto discutindo política, traçando planos, dando gargalhadas, comentando um autor. Eu sei os seus nomes, reconheço seus sonhos, compartilho de suas esperas. Todos os dias eles e elas me apontam caminhos, porque, vez em quando, os velhos titubeiam. Mas, quando essa hora vem, espreitando nas frestas da burocracia ou da necrosada mentalidade reinante, são eles e elas, que aparecem como a corda que me arrebata da movediça areia da acomodação. Juventude, salvação!

Sei que há muitos bravos estudantes na luta cotidiana, mas, talvez por que os conheça tão bem, sinto-me compelida a seguir com os que estão a soprar a rosa, rosa de ventos, rosa de riso, rosa de saberes, de comunhão. Porque sei do que lhes vai à alma, na cabeça e no coração. Porque compartilho com eles as manhãs, as tardes e algumas noites, na difícil tarefa de pensar o mundo criticamente, sem perder a ternura. Com eles vou... esperando que o porto a ancorar seja o da rebeldia, da mudança, da transformação!

Herança

Muitas coisas meu pai me ensinou. Amor pelos livros, honestidade e paixão pela cultura nacional. Desde pequeninha as vozes de Tonico e Tinoco me embalaram a vida. Música caipira de raiz. Uma lindeza... Nunca canso de ouvir... e divido por aqui essa preciosidade gravada nos anos 70.


quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Apontamento sobre a censura e os conselhos de comunicação

Um tema bastante complexo tem tomado o imaginário brasileiro através das usinas ideológicas da classe média, as revistas semanais, e os telejornais das grandes redes: a censura. O motivo de tal questão ter vindo à baila é a proposta de institucionalização dos Conselhos Municipais e Estaduais de Comunicação. Jornalistas, comentaristas, analistas e palpiteiros tem se referido a esse assunto de forma rasa e redutora, o que é bastante prejudicial para a formação do juízo das pessoas sobre o que é verdadeiramente censura.

Para falar sobre esse assunto vou me remeter ao livro da historiadora Beatriz Kushnir, lançado em 2004, mas ainda pouco conhecido na área da comunicação. É o “Cães de Guarda – jornalista e censores, do AI-5 à Constituição de 1988”. O trabalho tem uma importância tremenda porque, com ele, Beatriz desvela o outro lado da imprensa nos anos de chumbo, tempo da ditadura brasileira. Ali, é possível caminhar pelas intrincadas veredas do processo de censura que tomou conta do país depois do Ato Institucional número 5, em 1968, e ver o quanto a categoria dos jornalistas também colaborou para que a censura se fizesse real, seja através dos profissionais que assumiram o cargo de censores ou dos que assumiram a função de polícia.

O livro de Kushnir talvez não seja tão conhecido porque é justamente uma chaga aberta a sangrar, mostrando que não só os donos dos grandes meios foram coniventes com as barbaridades do regime militar, mas também muitos profissionais do jornalismo colaboraram de forma ativa. Naqueles dias, a censura era concreta e cotidiana. Palavras eram proibidas de serem pronunciadas, notícias sobre fatos de interesse público como uma epidemia de malária eram proibidas, informações sobre as arbitrariedades do regime, torturas, assassinatos e desaparecimentos então, nem pensar. Havia um setor que cuidava da censura aos meios de comunicação, aos artistas e a qualquer outro sujeito que usasse a palavra. A censura era uma imposição do estado ditatorial e impedia a livre expressão das idéias. Ela permeava todas as instâncias da vida, uma vez que também as reuniões eram proibidas. Um grupo com mais de três pessoas já era considerado motim.

No campo do jornalismo ela se expressou com a obrigatoriedade de revisão prévia das notícias feita pelos censores que, como revela o trabalho de Beatriz, tinha entre eles um número expressivo de jornalistas. As pessoas que se prestaram a esse papel eram contratadas como funcionários públicos e tinham curso superior, desfazendo-se então a idéia corrente de que os censores eram criaturas ignorantes e incapazes. Não o eram. No mais das vezes chegavam a ser “treinados” nas universidades, que ofereciam cursos sobre como censurar. O governo investiu muitos recursos neste tipo de capacitação. Vários dos censores foram entrevistados por Beatriz e a maioria tinha consolidada a certeza de que estava realmente ajudando a manter a moral e os bons costumes.

O livro de Beatriz também desvela como a censura explícita e realizada diretamente pelos funcionários públicos vai se transformando em autocensura. Os donos dos grandes jornais se mostravam incomodados pela intromissão governamental, mas não era muito em relação ao conteúdo noticioso, uma vez que a maioria dos empresários da comunicação apoiou o golpe e conspirava das mesmas idéias. Houve uma certa rusga, mas logo tudo foi se acomodando, e tanto, que os grandes jornais contratavam censores, aposentados ou não, para fazerem a pré-triagem. Ou seja, eles eram pagos pelo jornal para adequar as notícias ao gosto dos censores, para impedir que os jornais sofressem atrasos ou cortes. Isso foi gestando uma cultura de autocensura nos jornalistas, que acabaram incorporando a idéia de que certas coisas, temas, palavras e assuntos eram proibidos. Tudo se ajustou. A TV Globo, conta Beatriz, teve um funcionário deste tipo até os anos 90, ou seja, sobreviveu ao próprio regime militar.

Informações desta natureza dão conta do caráter conservador do jornalismo de massa brasileiro, ficando para a resistência – pequena, alternativa e quase ineficaz – o território do jornalismo crítico. A coisa ficou tão contaminada nas grandes redações que, no início dos anos 70, os jornalistas contratados para noticiar a vida, distorcida pelas lentes da censura, eram também policiais. Ou seja, desfaziam-se os limites da repressão e da notícia. Só era noticiado aquilo que interessava ao regime e os jornalistas eram eles mesmos os cães de guarda. Arrepiante relato.

A herança policialesca

Não foi sem razão que esta forma de autocensura acabou se irradiado pelos demais meios de comunicação. No geral, os donos da imprensa nacional compõem uma meia dúzia de famílias que, de forma capilar, acabam se reproduzindo em todos os estados da federação. Em cada um deles se pode observar o monopólio de um determinado grupo, que tem ligações muito próximas dos “jornalões” e TVs do eixo Rio-São Paulo. E, como os donos são sempre parte das elites locais, a forma de enxergar o mundo passa pelas lentes conservadoras e muitas vezes oligarcas.

Quando a ditadura militar terminou, o processo de censura estava consolidado. Mesmo com a volta da chamada democracia, nos veículos de comunicação os temas proibidos pelos militares continuavam proibidos. Basta lembrar a cobertura dos fatos que envolviam o MST. Ainda na metade dos anos 90, falar de sem-terra era aberração. E, quando estes temas puderam ser mostrados, a faceta policialesca do jornalismo seguiu de dentes arreganhados. Gente em luta logo era enquadrada nas caixinhas de “bandidos”, “baderneiros”, “invasores” e, agora, em pleno século XXI, “terroristas”.

Isso mostra que o terrível momento da censura e toda a sua organização institucional e empresarial, tão bem narrados por Beatriz Kushnir, ainda não acabou. Se assim fosse por que teríamos as matérias da Veja? Ou os editoriais raivosos do Jornal Nacional? Por que causa tanto medo à elite que domina os meios de comunicação um Conselho de Comunicação que junte movimentos sociais, sindicatos e gente do povo? Por que a idéia de ter gente “comum” discutindo a comunicação é apresentada como a possibilidade da censura? Por que regular a atividade de comunicação está sendo chamada de censura?

Na verdade, toda essa algaravia de que o Conselho vai trazer a censura é o exercício da má-fé dos mesmos de sempre, os que, inclusive, sustentaram todo o processo de censura nos anos de chumbo. A chamada “imprensa livre” não quer controle, não quer ninguém metendo o bedelho na sua extração de mais-valia ideológica, como bem já analisou o pensador venezuelano Ludovico Silva. A proposta do movimento social organizado não é a da censura. Não é esconder temas, proibir palavras, impedir que a vida real se expresse nos meios. Pelo contrário, o que foi construído pelos movimentos ao longo desta infindável transição para a democracia é a proposta de controle social, algo absolutamente natural num espaço que se diz democrático. As gentes têm sim o direito de opinar sobre o que sai na TV e no rádio. Estes setores são concessões públicas e a sede do poder é o povo. As pessoas têm sim o direito de estudar, discutir e deliberar sobre a programação e os horários de exibição de determinados conteúdos. Isso não é censura. Censura é o que os donos da maioria dos meios fazem hoje ao ocultar fatos, ao não contextualizar os acontecimentos, ao obscurecer a verdade. Isso é censura! O exercício do poder de veto de uma elite, dona dos meios.

Por isso que num momento como esse, de profunda desinformação provocada pelos mesmos meios, seria bem importante a leitura do livro de Beatriz Kushnir. Porque ela dá nome e sobrenome aos donos dos meios e aos jornalistas que colaboraram com a ditadura e com a censura. Porque mostra que ser jornalista não significa, em última instância, ser crítico. Não o era, naqueles dias, com grande parte dos jornalistas formados à facão, nas redações e na vida, e continua assim hoje, com os jornalistas formados em cursos na maioria medíocres e colaboracionistas em igual medida, articulados mais com os empresários do que com os trabalhadores.

Beatriz desvela esse universo desconhecido do período da ditadura militar que vai de 68 a 88 (quando da Constituinte), e isso é bom, porque, afinal, a imprensa só fala bem de si mesma, e os jornalistas críticos não têm onde escrever. Então, estas histórias muitas vezes só podem ser contadas assim, quando são objetos de dissertações ou teses. No caso da Beatriz avançou, virou livro e está aí para ser devorado.

Na história, o jornalismo sempre serviu às elites

É claro que um trabalho de gênese acadêmica tem suas limitações. Ele precisa de recortes, é o que pede a academia, tão pouco afeita a totalizações. Nesse caso, da discussão do jornalismo colaboracionista em tempos da ditadura militar, faltou um pouco da história do próprio jornalismo. Porque se a gente mergulha nessa história vai perceber que o papel da imprensa não é, nem nunca foi fiscalizar o poder. De que a imprensa não é, nem nunca foi um “quarto” poder. Ela é braço forte do poder instituído pelos poderosos, pelas elites.

O jornalismo como profissão, como espaço de divulgação diária de notícias sobre o mundo, nasceu com o capitalismo. Não que não houvesse jornalismo antes, se considerarmos jornalismo o ato de noticiar algo sobre o mundo. Os desenhos pré-históricos são notícias, as tábuas da mesopotâmia são notícias, as pedras chinesas são notícias, a bíblia, o alcorão, os vedas, a ilíada. Tudo isso são notícias. Mas o jornalismo, tal como o conhecemos hoje, como espaço da informação diária, ela própria virada em mercadoria, é cria do capitalismo. Os jornais diários são criados para o anúncio das mercadorias. Os textos são assessórios.

Assim, se é o capitalismo que cria o jornalismo, o que podemos esperar desta prática humana? Nada mais nada menos que ela trabalhe para a consolidação daquilo que é o próprio sistema que a engendra. Se for assim, é da natureza do jornalismo ser colaboracionista do sistema. Do status quo. Por isso, durante a ditadura iniciada em 64, assim como no Estado Novo, boa parte do jornalismo esteve a serviço do sistema. Então, o que o trabalho da Beatriz nos revela é pura e simplesmente o jornalismo sendo ele mesmo.

Ao longo da história do jornalismo nós vamos observar que o que sempre esteve em questão foi a liberdade de expressão dos donos do poder. As situações de crítica ou do jornalismo assumindo a frente de denúncias, desvendando maracutaias, etc, sempre foram coisas pontuais, espaço específico de alguns “jornalistas”, hereges, os fora da casinha. Pessoas, seres humanos comprometidos com uma outra visão. E também, ao longo da história podemos perceber que quando estes jornalistas tiveram poder, é porque de alguma maneira estavam ajudando seus patrões a ganharem dinheiro, ou porque estava acontecendo alguma mudança de temperatura do mundo, como por exemplo, no período da abolição.

E os dias atuais?

Vamos nos remeter ao hoje. Qual a diferença entre o jornalismo entreguista e colaboracionista dos anos de chumbo e o de hoje? Qual a diferença do jornalismo praticado pelos Frias/Caldeira naqueles dias, e o praticado pela Globo hoje, ou qualquer outro, Diário Catarinense, Record, etc??? Como eles noticiam as FARC, os fatos na Venezuela, na Bolívia, em Cuba? Como são as manchetes? Que denúncias aparecem na televisão, se não aquelas que são levantadas pelos repórteres/policiais, que sobem os morros no carro da polícia? Quem são os terroristas de hoje, apontados com nome e sobrenome na televisão? Nada mudou. É da natureza do jornalismo ser parceiro do sistema.

Agora, mesmo diante desta realidade e justamente porque o jornalismo é feito por pessoas, ele pode escapulir de seu leito. O jornalismo, então, pode ser crítico. Sim, pode. Assim como o direito pode ser crítico, a arquitetura, a história, a medicina. Todos os saberes podem ser críticos se as pessoas forem formadas para isso, se aprenderem a fazer uso da criticidade. Mas, como sê-lo se a escola é formatadora de uma mentalidade conservadora, se a universidade é hoje um dos espaços mais atrasados, de colonialismo mental, de reprodução do mesmo?

Há um autor gaucho que formulou seu pensamento mais original em Santa Catarina, na Universidade Federal: Adelmo Genro Filho. Ele criou o que chamou de “teoria marxista do jornalismo”. Também compreendeu que o jornalismo é filho dileto do poder instituído, do capitalismo, mas, igualmente percebeu que o jornalismo não é um “ente”, algo imobilizado, cristalizado. Ele é praticado por pessoas. E estas são passíveis da dialética. Portanto, o jornalismo apresenta brechas. E os jornalistas críticos podem e devem mergulhar nessas brechas, trazendo para os leitores/ouvintes/espectadores um texto que possa caminhar da singularidade do fato até a universalidade de toda a atmosfera que envolve aquele acontecimento singular. Isso tira o maniqueísmo do processo jornalístico e ele pode ser crítico em qualquer tipo de sistema. Adelmo é pouco conhecido na universidade, talvez por sua teoria ser “marxista”, o que só consolida o atraso da academia.

No caso da ditadura militar brasileira, foi o jornalismo alternativo que usou do expediente de ser crítico. E hoje, igualmente é o alternativo que combate o jornalismo chapa branca, que se entrega aos dominantes. Mas, já não mais apenas como o jornalismo, tal qual o conhecemos, e sim como uma proposta original, nascida das entranhas do que deveria ser, de fato, a sede do poder, ou seja: o povo organizado. É a proposta da soberania comunicacional, na qual está inserida a ideia de um conselho de comunicação democrático, onde as gentes sejam protagônicas.

A soberania comunicacional

Por isso que não trabalhamos mais com a ideia de democratização da comunicação, que era válida nos anos 90, mas que, agora, encontra seus limites. Democratizar implica em melhorar o que aí está. E não é isso que queremos. Nossa proposta é a de soberania comunicacional, algo que pressupõe o novo, o absolutamente novo. O jornalismo reinventado, o jornalismo assumido pelas gentes organizadas. Porque as pessoas sabem que o jornalismo que aí está não lhes diz respeito. Por isso foi tão difícil aos jornalistas, e eu diria que foi impossível, fazer as gentes compreenderem porque o STF devia manter a exigência do diploma para o exercício da profissão. As pessoas não se reconhecem no jornalismo dos grandes meios, não se vêem. Sabem que não os representa. E isso provocou uma profunda derrota aos trabalhadores do jornalismo, vitória para os patrões, que agora poderão explorar mais.

Mas, é por conta de não se reconhecerem no jornalismo oficial, dos grandes meios, que os movimentos sociais estão se apropriando das técnicas de comunicação para contar suas histórias. Querem produzir conteúdo, controlar os meios, decidir o que é importante ou não. Querem exercer a soberania. Uma grande batalha com a corporação, mas que precisa ser pensada e compreendida. A luta contra o capital pressupõe a parceria com o povo. Sem as maiorias os jornalistas que estão fora do sistema de colaboração tampouco poderão avançar.

Não é sem razão que o sistema de poder, a se ver ameaçado pelo povo, a verdadeira sede do poder, revê suas estratégias e as legaliza, como vimos no livro de Beatriz Kushnir “Os cães de guarda”, no qual ela mostra como a ditadura ia criando as leis que determinavam a censura, amparando “legalmente” os desmandos de um governo ilegalmente constituído. Por isso, não causa surpresa, hoje, a decisão jurídica definida pelo STF no que diz respeito à profissão do jornalismo. Os empresários temem a opinião pública bem informada, tal como já alertava George Orwell, no seu prefácio ao livro “Revolução dos Bichos”. Assim, com medo do povo informado e caminhando para a soberania, os donos dos meios inviabilizam a presença da massa crítica nas redações dos seus veículos. Desregulamentar a profissão é diminuir ainda mais a chance de qualquer pensamento crítico nos meios de comunicação de massa, porque, afinal, mesmo levando em conta a formação colonizada, sempre há a possibilidade de alguém escapar. Agora, sem lei que os ampare, sem exigência de formação, será mais fácil contar com os colaboracionistas, os que se autocensuram em nome da manutenção do emprego. Jogada de mestre.

Uma olhada no acórdão do STF e lá está: “os jornalistas são os que se dedicam profissionalmente ao pleno exercício da liberdade de expressão. Estão ligados e não podem ser pensados separadamente, então a regulamentação da profissão vai contra o direito inalienável de expressão”. Ora, que relações perigosas da justiça com o empresariado provocam uma fala como essa?

O jornalismo é uma profissão, a liberdade de expressão não depende do jornalismo. Qualquer ser humano pode escrever uma carta, pintar um muro, fazer um desenho, gritar na praça. O jornalismo é uma profissão que, por acaso, usa a palavra. Mas, agora, desregulamentado, se prestará ainda mais ao jogo obsceno na censura velada. E aí estamos de novo no mesmo mundo de 68, 69, 70. A proposta dos conselhos de comunicação, com a participação de outros setores da sociedade organizada, não garante nada, nem democratização, nem soberania. Isso pode ser visto em outros conselhos já existentes como o da saúde e o da educação. Mas é um espaço importante de organização, de compreensão. Ou seja, é espaço “perigoso”, que pode provocar esclarecimentos, que pode fazer as gentes avançarem para o desejo de soberania. Por isso esse é um tema tão atacado. As elites têm medo do povo e isso é muito bom. Não é à toa, portanto, que os dignos representantes da elite nacional falem tão mal do conselho, e se esganicem falando que eles trarão a censura. Porque, na verdade, é o contrário. O povo não trará a censura e sim o esclarecimento. E isso é coisa difícil de engolir.

Então, não surpreende que nas redações continuem vicejando os cães de guarda, mais do que nunca. Aos jornalistas críticos estão relegadas as margens, o alternativo. Com a diferença de que, agora, estes e as gentes, juntos, poderão avançar no rumo da soberania comunicacional, construindo com os movimentos organizados um outro tipo de estado, que não este, e uma outra forma de organizar a vida, que não a capitalista.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Os mortos


Esta bela homenagem aos mortos aprendi com os povos originários da Bolívia. Quando é dois de novembro eles fazem festas e comilanças para receber os que já partiram desta vida, porque acreditam que nesse dia eles vêm para passear entre os vivos. Na véspera as gentes ajeitam as fotografias ou qualquer outra lembrança dos seus e preparam pãezinhos doces para que eles sintam-se acolhidos com o gosto da vida boa. Junto das fotos ficam também dois pães bem especiais, feitos em formato de cavalo e de escada. É que contam os mais velhos que, durante a noite, os mortos descem do céu pela escada que ali está e, com o cavalinho, eles saem a passear de casa em casa, visitando parentes e amigos. Dizem ainda que sempre acontece algo inusitado para avisar que os mortos estão por aqui. Um vento, uma porta que bate, qualquer coisa assim...

Foi assim que neste dois de novembro preparamos nossos mortos. Cada um deles foi colocado na cesta dos pães junto com a escada e o cavalinho. Todos puderam descer e andar por aí, comendo, dançando, cantando ou apenas conversando. O Renato fez os pãezinhos com chocolate e nós desfrutamos de um delicioso café. Durante o dia percebemos que os mortos por ali passavam, um a um, fosse num passarinho a cantar desvairado, na brisa suave, no sol quente, no pula-pula dos gatos que, como se sabe, são os que podem ver os espíritos. Falamos dos nossos mortos com alegria, lembramos suas manias, sua loucuras, suas coisas boas. Demos bastante risada e comemos juntos.

Na Bolívia chamam estes pãezinhos com cara de gente de tantawawas, aqui os fizemos do nosso jeito, mas com a mesma fé. Lá, como aqui nesta humilde casinha do Campeche, se acredita que os mortos nunca morrem enquanto houver alguém que se lembre deles. E se lembra deles com alegria, porque um dia passaram por nossas vidas e nos deixaram toda essa beleza.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Uma mulher na presidência


Sempre admirei as mulheres valentes e ainda me arrepio ao lembrar Micaela Bastidas, vendo seus filhos e seu marido serem esquartejados, impávida, sabendo que havia feito a coisa certa: lutar pela liberdade, contra o colonialismo, pela sua terra e pelo direito de ser quem era. Encanta-me a história de Juana Azurduy, espada em punho, lutando pela libertação desta “nuestra América”, encurralada, com seus filhos nos braços, sem nenhuma vacilação. Ou ainda Bartolina Sisa, comandando as tropas aymaras no cerco a La Paz, poderosa como uma deusa, a alertar para o perigo da conciliação de classe. E Manuelita Saenz que, desde seu profundo amor por Bolívar, se fez generala, defendendo a liberdade assim como defendia seu homem, adaga na mão, lutando contra os assassinos. Ou Anita Garibaldi, que enfrentou o olhar de reprovação dos seus e partiu, montada em seu cavalo, com seu amor, empunhando a espada na luta pela liberdade. Ah, essas mulheres...

Poderia ainda citar outras tantas que, nestas terras de Abya Yala, mostraram seu valor, entregando a vida para construir um mundo novo, que garantisse a liberdade e a soberania popular. Mulheres guerreiras que simplesmente foram à luta sem reivindicar diferença de gênero, porque o que estava em jogo era o futuro das gentes e isso era tudo o que importava. E foi porque me criei ouvindo estas histórias que nunca fui muito afeita a esse debate feminista. Desde pequena, nas planuras da fronteira, as mulheres da minha vida, poderosas, estavam muito mais para Ana Terra que para Bibiana. Sempre prenhas de minuano e horizontes, as mulheres da minha infância empunhavam armas, corcoveavam nos cavalos bravios, banhavam-se nuas nas sangas, dormiam com seus homens na campina, disputavam carreira, queda de braço, tomavam caçacha e ainda lavavam roupa e faziam comida, com o palheiro acesso entre os lábios e aquele olhar de picardia.

Digo isso para alertar sobre o fato de que termos agora a primeira mulher presidente não quer dizer muita coisa. Porque antes de tudo é preciso saber: que projeto de país tem essa mulher? Que propostas têm para a educação, a saúde? Que modelo econômico vai defender? Com que valentia vai enfrentar a oligarquia agrária? Como vai enfrentar o tema dos povos originários? Até onde vai ceder diante da pressão das transnacionais? O quanto vai efetivamente tornar real o serviço público capaz de atender as demandas concretas da população? Assim, o fato de ser mulher não a torna especial. O que a fará única e “imorrível” é o caminho que vai trilhar. Basta lembrar Margareth Tatcher, a dama de ferro, mulher. E aí? Qual o seu legado para a Inglaterra? Para quem governou? Quem não se lembra da lenta e cruel destruição da categoria dos mineiros?

Dilma Russef tem uma linda história. É, sem dúvida, uma guerreira. Passou pela luta contra a ditadura, foi presa, torturada e tudo o mais do pacote básico das violentas ditaduras desta nossa América. Sobreviveu não só no que diz respeito à vida mesma, mas também na capacidade de superar e constituir uma bonita carreira profissional e política. Mas, no governo de Luis Inácio, foi “a mãe” do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que, muitas vezes, mal planejado e eleitoreiro, não cumpriu com a sua promessa de melhorar a vida das gentes. Um exemplo da minha aldeia: aqui, no bairro Campeche, o PAC financiou a construção de uma rede coletora de esgoto. Isso é bom. Mas a proposta que tem para o destino final é a construção de um emissário que leve os dejetos todos para o mar, poluindo e destruindo a natureza. Que crescimento isso acelerou? Também foi ela quem ajudou a derrubar os “entraves ambientais” para a construção de grandes usinas, comprovadamente nocivas ao meio ambiente e as gentes. Isso foi ruim, muito ruim. Que o digam as gentes ribeirinhas e os povos indígenas.

Agora ela aí está. Competente, séria, dedicada, criatura do Lula, a quem agradeceu emocionada no seu discurso de posse. “Sou uma mulher de esquerda”, declarou em uma entrevista. “Vou governar para todos”, insistiu na sua fala à nação pouco depois de eleita, e deu bastante ênfase a idéia de desenvolvimento, fazendo crer que o Brasil pode entrar para o seleto clube dos países centrais. Mas, é isso que se quer? Ser “desenvolvido” como a Inglaterra, os Estados Unidos, a França? Ser predador, explorador, imperialista? Há que ver qual é a estação final a qual Dilma quer chegar.

Os oito anos de Luis Inácio foram anos de bonança para a elite nacional. Nunca os ricos ganharam tanto, nunca os bancos ganharam tanto, nunca os latifundiários ganharam tanto. O próprio Luis Inácio admitiu isso em um de seus discursos. É fato que os pobres tiveram um quinhão do bolo, mas, vamos combinar, um pequeno quinhão. O bolsa família deu sobrevida a uma gente que definhava, mais ainda não lhes apontou o caminho da libertação. Criaram-se 14 novas universidades, que ainda patinam na qualidade. Com o Prouni, deu-se muita grana para as escolas privadas, embora isso garantisse vaga para alunos carentes. Então, não dá para negar que houve alguns avanços, mas sempre se reivindicou que era preciso mais. Muito mais.

Hoje, na senda neodesenvolvimentista apregoada por Dilma, estão encerradas as promessas de crescimento econômico e social, o que parece coisa boa. Mas, talvez falte ao governo explicar a custa do quê isso pode acontecer. Se antes o chamado desenvolvimento estava bloqueado pela dívida externa, hoje, sendo o Brasil periferia e dependente, esse tal desenvolvimento só pode chegar com o sacrifício da maioria, os mais pobres. E sempre tem sido assim. Desenvolvem-se os mais ricos, recorrentemente.

Dilma falou em diminuir a diferença entre os mais ricos e os mais pobres, em acabar com a miséria, com a cracolândia, com o atraso. Promessas grandiosas que serão cobradas. Mas, na queda de braço com a elite nacional é que se poderá ver até onde vai a posição de esquerda da nova presidente. Existe aí um grande desafio que não será vencido sem uma mudança radical na proposta de organização da vida. O desenvolvimento sonhado não pode ser o mesmo dos países centrais. Há que se avançar para uma proposta nacional popular, capaz de realmente garantir a participação popular efetiva e protagônica. Sem a soberania do povo os avanços serão pífios.

Enfim, aí está a nova presidenta, uma mulher que “sim, pode”. Mas, feminina ou não, sua proposta de governo estará sob as luzes, e a nós cabe acompanhar. Sabemos que na composição PT/PMDB não deve haver espaço para o avanço no rumo do socialismo. O que se pode esperar são algumas reformas, e muitas delas serão contra as gentes, como a anunciada nova reforma da previdência, cuja versão européia está levando milhões às ruas no velho continente. Isso significa que não há tempo para esmorecer na luta por outra forma de viver. A luta das gentes segue e seguirá até que se construa, coletiva e conscientemente, a nova sociedade.