sexta-feira, 7 de março de 2008

A guerra!

Está nos Vedas, está na Torá, no Novo Testamento, no manual de Sun Tsu, no programa O Aprendiz, nas colinas de Golan, no Afeganistão, no Iraque, na faixa de Gaza, no Rio de Janeiro, em Florianópolis, dentro de nós, está em toda parte. A guerra! Esse momento funesto em que a nossa raça luta entre si, pelo desejo de dominar. Não há consensos habermasianos quando as crianças poderosas iniciam o mantra: “eu tenho o petróleo, você não tem”. Ou então, quando, extasiadas pela beleza do outro, querem tomá-la, à força. Desejo de poder. Ter o que não é seu.

Sempre vejo os senhores das guerras como vampiros. Eles querem sugar o que é do outro, tirar até a última gota, para que possam viver em abundância. Assim, neste mundo cão, a riqueza de um é sempre a morte do outro. E tem sido assim desde priscas eras. Se tu tens diamantes no chão, prepara-te para ver teu povo morrer, ser escravizado. Se tens petróleo, estás perdido. Se tens ouro, estás morto. Se tens prata, estanho, guano, estás dizimado. Os que têm as melhores armas ditam as leis. Malvinas é da Inglaterra, ora pois! Não importa que seja território originário de outros seres. Quem ganhou a guerra, afinal?

Agora o império estadunidense já tem um bom parceiro no oriente. Israel está fazendo o trabalho de casa e muito bem. Joga bomba nos “terroristas”, destrói a faixa de Gaza, dizima mulheres, crianças. Está tudo sob controle naquela área. Tem as armas gringas e deita e rola.

Por conta disso, agora é hora de destruir Chávez, Correa, Morales, estes negros/índios/povos que se metem a sair um pouquinho da linha. Gente que insiste em falar de soberania, de direitos dos povos, de liberdade, de controle de suas próprias riquezas. Há que amassá-los, destruí-los, para que não sobre nada. Para que tudo tenha de recomeçar do zero. Para que esta gente saiba qual é o seu lugar: servos, submissos, ajoelhados diante do império.

E mais, nem precisa sujar as mãos. A marionete formada nas suas universidades, o representantezinho das elites locais - sempre dispostas a entregar seus povos como cordeiros para os dentes afiados do vampiro – cumpre a missão. É ao que se presta o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, querendo lavar de sangue a pátria grande.

No mesmo momento em que as FARC decidem dar um passo em direção à paz, em que começam a liberar prisioneiros, dando mostras de que não são eles os “bandidos terroristas”, o governo colombiano faz uma ofensiva de guerra. Não suporta ver o protagonismo de Hugo Chávez e Piedad Córdoba. Adentra territórios soberanos com o uso de tecnologia estadunidense, mata pessoas enquanto dormem e tem a coragem de dizer que está em busca da paz. Resta saber se os governos do Equador e da Venezuela, vão morder a isca. Resta torcer para que não o façam.

Tudo o que os Estados Unidos querem é mergulhar ainda mais esta parte norte da América Latina num caos de sangue e terror. Não por conta das gentes, mas por conta da sua própria fábrica de terror, essa que eles lançam sobre o mundo, a partir de seus aliados espúrios. Querem o petróleo da Venezuela, querem a velha submissão, querem o estanho, a prata, o ouro, os diamantes, o ferro, o urânio, a terra, a cana, o fumo. Querem tudo. E querem gente ajoelhada, cabeça baixa, olhar vazio. Já estão fazendo guerra na Colômbia desde há tempos, mas agora querem destruir o que chamam de “eixo do mal”, ou seja, gente que não se dobra a eles.

É sempre o mesmo velho círculo de horror. O império ataca, as gentes se defendem, tudo acaba em sangue. E, também como sempre, no mais das vezes, salvo raras exceções, as maiores baixas são sempre as nossas, dos povos que querem viver em paz, riquezas repartidas, dignidade. Como entender essa matemática? E o que fazer quando nossa soberania é aviltada, nossas riquezas roubadas, nossa vida sugada? Que outro remédio senão lutar? Dolorosas perguntas, dolorosas respostas.

O certo é que as gentes minimamente precisam saber por que, afinal, alguns governos fazem guerras. Por que mandam seus jovens para frente de uma batalha que os governantes só verão na TV, confortavelmente em seus gabinetes. Ninguém verá Bush comandando um pelotão de terra, enfrentando a fúria sã de quem resiste. Os senhores da guerra estão no conforto de seus lares, com seus filhos, esperando ver o sangue do outro jorrar. Eles sequer são os que apertam o botão. Eles só assistem. Os que apertam o botão lá do alto do avião, acreditam estar “limpando a área”, não enxergam os rostos, não escutam os gritos das crianças. Tudo é só um pontinho perdido na distância.

Pois é bom que se saiba que a guerra está sempre muito perto de nós. Nós, que não nos importamos com os iraquianos que morrem feito moscas – mais de um milhão já foi dizimado. Nós que estamos nem aí para os palestino, massacrados dia após dia. Nós que não fazemos caso dos garotos empobrecidos estatelados à bala nas vielas de nossas pacatas cidades. Nós, que não nos importamos com nada que não nos diga respeito. A guerra está aí. E é fruto da ganância do império e seus cães de guarda que tal e qual um César romano vêm rompendo tudo. Tal qual um Midas “al revés”, destroem tudo que tocam. Que faremos?

Esconderemos a cabeça e diremos: não temos nada a ver, ou vamos tratar de informar as gentes para além das telas da Globo e suas reportagens sacanas que anunciam ser a Venezuela um reduto de terroristas e ser o governo Chávez um financiador de guerrilhas? Será possível que ninguém se lembra das mentiras sobre o Iraque? Será que existe gente ingênua o suficiente para crer no que sai da boca ventríloqua de Fátima Bernardes? O império quer o petróleo da Venezuela, o gás da Bolívia, o petróleo equatoriano, as terras brasileiras, a prata, o ouro, tudo. O império quer as gentes de joelhos, perdidas de sua dignidade, escravas. Nós estaremos de qual lado? Fazendo o quê?

Os cascos dos cavalos imperiais estão sob nossas cabeças. Executaram soldados das FARC que dormiam na selva equatoriana. Gente que luta por um país soberano. O terrorismo é o estado colombiano. Terrorista são os senhores da guerra. Estejamos alertas e vigilantes. Porque, como bem lembra o poeta palestino Mahmud Darwish: “Ainda goteja a fonte do crime...” Desperta Abya Yala!

segunda-feira, 3 de março de 2008

O ônibus das cinco e quinze
























Essa crônica faz parte do livro: Líricas - a palavra amorosa do cotidiano

Chegar em casa é sempre uma viagem. Cada dia diferente, embora o caminho seja o mesmo. Mas é que dentro do ônibus seguidamente acontecem coisas espantosas, visto que os seres humanos são sempre surpreendentes. O trajeto até o Rio Tavares é de puro assombramento. Primeiro com a paisagem. O mar, os montes descortinando o horizonte, os casebres de pescadores, o absurdo do aterro, as gentes, os motociclistas e suas ousadas manobras, os carros em profusão. Quando é final de tarde então, é de enlouquecer. O céu fica de um rosado/dourado, uma coisa única, e a vontade que se tem é de gritar, tamanha a força da beleza.

Depois, no terminal desintegrado, a espera. Meia hora, quarenta minutos, aquela coisa dolorosa de se estar aprisionada num lugar, tão perto de casa. Hora de pensar no quão surreal pode ser uma obra pública, se não tiver um mínimo de humanidade. Quem planejou o transporte, nunca o usou. Não sabe do horror e da exasperação que aquilo tudo pode acometer num vivente.

Então, num dia qualquer, vindo mais cedo para casa, por conta da sorte (essa danada), a gente pega o ônibus das cinco e quinze. É o que sai do Tirio rumo ao Jardim Castanheira, via Eucalipto. Ele segue pela Pequeno Príncipe, tranqüilo e sereno, passando pelas casas sem muro, cheias de ameixas, romãs e limões. Então, lá no final, quase perto da praia chega a parada que fica em frente à Escola Brigadeiro Eduardo Gomes. É quando tudo começa.

Ali, o ônibus fica parado por uns quinze minutos. É hora de entrar toda a profusão de meninos e meninas, libertos do colégio. Dois deles tem deficiência e sobem com as cadeiras de rodas, felizes por partilharem aquela fartura de vozes. O restante parece formar um poderoso furacão. Eles vão passando a catraca, revestidos de uma atmosfera de gritos e risadas. Todos falam muito alto e ninguém consegue entender o que de fato dizem. Desconfio que não digam nada, é só uma algaravia juvenil, atordoante e insana. Um grito de liberdade, de alegria pura, de esplendor.

Alguns deles se dependuram nos ferros que servem para o povo se segurar e sacodem feito macaquinhos felizes. O cobrador, que já os conhece pelo nome, um a um, vai vociferando. “André, sai do buraco da porta”, “Marquinho, não pula no banco”, “Sossega Fabiano”. E aquilo tudo vai se transformando numa balbúrdia digna de Babel. Ninguém ouve ninguém. Os passageiros que nunca pegaram aquele ônibus ficam com os olhos arregalados, sem fôlego, incomodados. Clamam por Herodes e o abençoariam se ali aparecesse para dar um fim naquela confusão.

Mas, quem já se acostumou a pegar o Castanheira das cinco e quinze não consegue disfarçar a incontrolável alegria que vai invadindo a alma. Aquela gritaria toda vai atordoando, atordoando, até o ponto de a pessoa também começar a gritar. Quando o ônibus passa em um quebra-mola então, os decibéis vão ao volume máximo. É a catarse. Êxtase total.

Então, quando o ônibus passa da parada do Raio de Sol., os grupos de pequenos vão saindo em profusão e, pouco a pouco, o barulho arrefece. Os gritos vão amainando e se perdem nos caminhos de areia do Campeche por onde vão sumindo as crianças e suas enormes mochilas de aula.

Na parada do Centro Comercial Castanheira eu desço junto com uma parte desta turba. E com ela ainda vou um bom trecho do caminho, partilhando da gritaria. Meus 47 anos desaparecem e consigo ver a menininha que fui, vestida de vermelho, a bailar, pulando as poças de água que se formam no caminho. Minha alma dança e penso que todo o ser humano deveria ter um ônibus das cinco e quinze na vida. Porque iria perceber que a melhor coisa que pode acontecer a alguém é se embriagar de meninice. Gritar feito louco, pular pelas ruas, sorrir por nada. Ah, esse meu Campeche e esses anjos que me ensinam a des-crescer!